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Autor Tópico: Jovens portadores de deficiência: sexualidade e estigma - Parte 1,2,3  (Lida 2653 vezes)

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Jovens portadores de deficiência: sexualidade e estigma - Parte 1




Caro leitor,
Durante as próximas semanas, faremos um estudo do artigo “Jovens portadores de deficiência: sexualidade e estigma" das pesquisadoras Ana Helena Rotta SoaresI, Martha Cristina Nunes MoreiraI e Lúcia Maria Costa MonteiroII. Acompanhe, hoje, a primeira parte desse artigo.

Resumo
O presente artigo pretende ampliar a discussão sobre deficiência e sexualidade valorizando as expectativas, crenças, desejos e experiências de jovens com deficiência física. Refere-se a um recorte parcial dos dados da pesquisa de doutorado "Vocês riem porque eu sou diferente, eu rio porque vocês são todos iguais: as dimensões da qualidade de vida em jovens portadores de espinha bífida", que objetivou discutir a qualidade da vida de jovens portadores de espinha bífida em duas culturas: brasileira e norte-americana.
A percepção, interesse e problematização dos participantes em relação à sua sexualidade e seus desdobramentos na sua família, serviço de saúde e círculo de amizades motivaram um maior aprofundamento da temática e apontaram para a necessidade de abordar o conceito sexualidade de maneira englobante. Os discursos dos jovens priorizam quatro aspectos relacionados à vivência da sexualidade: (1) sexualidade e cuidado; (2) sexualidade, imagem corporal e as características desacreditáveis; (3) a sexualidade do portador de deficiência física através do olhar da violência, e finalmente; (4) a sexualidade e interrogação das informações médicas.

Introdução
Segundo Heilborn et al.1, as idéias difundidas pelo senso comum e pela mídia sustentam que a juventude deve ser protegida e disciplinada. Tal proteção se refere tanto ao que se acredita serem características próprias da adolescência, como irresponsabilidade, imaturidade, inconseqüência, quanto aos perigos da sociedade, como drogas, violência e sexo. Deste modo, observa-se ao longo dos anos a associação da juventude com as práticas de risco, relacionamentos transitórios, irresponsabilidade e vitimização. Para o jovem portador de deficiência, a questão do risco e o sentimento de insegurança florescem com maior intensidade. A relação lógica de causa e efeito entre a juventude como uma ameaça constante a si mesmo e à sociedade e a necessidade de prevenção a sua exposição a determinados fatores fica ressaltada e intensificada quando a juventude em referência foge dos padrões de "normalidade". Desta forma, busca-se tanto na família, quanto nos serviços de saúde e finalmente, na sociedade em geral, uma maneira para prevenir, disciplinar e controlar a juventude deficiente.

O imaginário social que envolve o jovem deficiente contribui para uma visão estigmatizante e limitante pautada em valores, crenças e expectativas sociais que traduzem o portador de deficiência como um incapaz, frágil e vulnerável2. As dificuldades destes jovens em exercitar seus direitos e buscar sua autonomia através da inserção e participação social efetiva dizem respeito essencialmente ao cumprimento dos direitos desta população, incluindo o direito à sexualidade. O fator de risco ressaltado no caso destes jovens se retroalimenta do pressuposto de que o indivíduo portador de deficiência é um ser incompleto sexualmente sem possibilidades ou desejos afetivo-sexuais, que deve ser cuidado, disciplinado e protegido.

Para Lhomond3, a sexualidade é um fenômeno socialmente construído, apesar de ser considerado, muitas vezes, como uma evidência "natural". A autora aborda a concepção da sexualidade como um conjunto de leis, costumes, regras e normas variáveis no tempo e espaço, que reflete o pensamento social sobre a mesma, além da maneira que a mesma é controlada e organizada pela sociedade. Segundo Bastos & Deslandes4, uma das maiores barreiras para a discussão da sexualidade de pessoas com deficiência deve-se à escassez de relatos de experiência sobre o assunto, que alimentada pelo preconceito e discriminação existentes colabora para uma perspectiva de que o portador de deficiência não tem direito a exercer a sua sexualidade. Desta forma, o desenvolvimento desta faceta fundamental para o ser humano tem sido negligenciado, silenciado e desconsiderado tanto pelas famílias de portadores de deficiência quanto pelos profissionais de saúde que atendem a esta clientela. A dificuldade da sociedade em perceber nestes jovens possibilidades de vinculação afetiva e sexual limita suas oportunidades de vida, mantendo uma relação antagônica entre a imagem dos mesmos como "não-pessoa" e o desenvolvimento da sexualidade. Esta postura de negação das possibilidades sexuais destes jovens indica que os mesmos devem ser isolados, protegidos e infantilizados.

O presente artigo pretende ampliar a discussão sobre deficiência e sexualidade valorizando as expectativas, crenças, desejos e experiências de jovens portadores de deficiência física. Acreditamos que tal proposta contribuirá para a transformação da visão limitante e contraproducente acerca desta população.




Dificiente Ciente
« Última modificação: 14/06/2010, 23:15 por migel »
 

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Jovens portadores de deficiência: sexualidade e estigma - Parte 2



Caro leitor,
Acompanhe, hoje, a segunda parte do artigo“Jovens portadores de deficiência: sexualidade e estigma" das pesquisadoras Ana Helena Rotta SoaresI, Martha Cristina Nunes MoreiraI e Lúcia Maria Costa MonteiroII.

Métodos
O presente artigo refere-se a um recorte parcial dos dados da pesquisa de doutorado "Vocês riem porque eu sou diferente, eu rio porque vocês são todos iguais: as dimensões da qualidade de vida em jovens portadores de espinha bífida"5. O título do trabalho reflete a presença do estigma através de uma frase utilizada pelos jovens para diferenciar-se positivamente dos "normais". A pesquisa teve como objetivo explorar a qualidade de vida de pacientes portadores de espinha bífida em dois serviços de referência: no Brasil e nos Estados Unidos.
A percepção, interesse e problematização dos jovens participantes em relação a sua sexualidade e seus desdobramentos na sua família, serviço de saúde e círculo de amizades motivaram o aprofundamento da temática no sentido de gerar conhecimento tanto para os mesmos e suas famílias como para profissionais de saúde que lidam com esta clientela.

A pesquisa - de onde deriva a discussão desse artigo acerca da sexualidade e a deficiência na juventude - dividiu-se em duas etapas, sendo cada uma delas referente à coleta de dados em dois serviços de saúde, ambos especializados no tratamento de crianças e jovens portadores de espinha bífida. A primeira aconteceu no Children's National Medical Center (CNMC), em Washington, D.C., e a seguinte no Instituto Fernandes Figueira (IFF), no Rio de Janeiro. Na fase referida ao CNMC, foram incluídos no presente estudo quinze jovens, nove do sexo feminino e seis do sexo masculino, entre 14 e 20 anos, portadores de espinha bífida e usuários da Clínica de Espinha Bífida, entre março e julho de 2004. Na fase seguinte, foram incluídos dez jovens, oito do sexo feminino e dois do sexo masculino, acompanhados pelo Ambulatório de Urodinâmica do IFF entre janeiro e junho de 2005. O projeto de pesquisa foi submetido para avaliação ética e aprovado pelos setores responsáveis em ambas as instituições.

A pesquisa teve como propósito discutir a noção de qualidade de vida de maneira ampliada, adotando-se um aporte qualitativo construído a partir das seguintes técnicas metodológicas: (1) realização de entrevistas semi-estruturadas; e (2) realização de um grupo focal com adolescentes entrevistados.

A análise do material baseou-se teoricamente na abordagem microssociológica6, com o recorte das falas a partir dos domínios sugeridos por Parkin et al.7 no que concerne à qualidade de vida. Considerando que tais domínios fragmentam a experiência da vida revelando-se insuficientes como estratégia de compreensão da realidade descrita, optamos pela organização de categorias empíricas fundamentadas nos discursos dos sujeitos. Inicialmente, reconhecemos que as experiências primárias na família e no espaço de socialização secundária, representado pela escola, ganham destaque no discurso dos jovens, o que fundamenta o processo de sociabilidade e inserção social, nossa primeira categoria. A segunda categoria construída através dos dados foi denominada de autonomia e refere-se à possibilidade de articulação entre as estratégias de autocuidado e a relação com a menor ou maior ampliação dos círculos sociais. A terceira categoria, denominada de área médica, foi construída em virtude da consideração de que a vivência da doença crônica intermedia os espaços do cuidado em saúde, e seus atores em interação constroem conjuntamente significados que interferem no processo de cuidado do jovem com espinha bífida. A quarta categoria se refere às estratégias de enfrentamento do estigma e diz respeito tanto ao reconhecimento da especificidade da doença crônica e dos quadros de deficiência física ou das marcas invisíveis da doença como à maneira como o jovem administra tais especificidades. Finalmente, apesar da sexualidade não haver constado inicialmente como uma das dimensões que compõem a qualidade de vida de jovens portadores de espinha bífida, o tema se fez presente e comum nos discursos dos jovens entrevistados, principalmente nos relatos relacionados ao autocuidado, inserção social, autonomia e projeto de vida. No caso da espinha bífida, encontramos um estigma central, relacionado à sua visibilidade no corpo. Este estigma relaciona-se ao caso da aparência física ligada ao processo simbólico de conquistar e ser conquistado, tendo o corpo como estratégia de sedução ou conexão que merece uma exploração mais detalhada. Desta maneira, inclui-se como quinta categoria empírica a sexualidade. Os dados discutidos a seguir dizem respeito à análise desta categoria especificamente. Ressaltamos que os nomes atribuídos a seguir aos discursos dos jovens que participaram na pesquisa são fictícios, com a finalidade de proteger sua privacidade.

Resultados e discussão

Sexualidade e cuidado (1ª categoria)
Devido à singularidade da espinha bífida no que se refere às complicações miccionais, é impossível não pensar em sexualidade quando falamos nos cuidados que a doença requer e de suas leituras na família do indivíduo adoecido, principalmente o cateterismo vesical.

A relação entre a construção de uma visão estigmatizante pelo jovem acerca do cateterismo e as crenças familiares pode ser observada na entrevista de Sharon, uma moça norte-americana de 16 anos, que relatou ter problemas com o cateterismo. Sharon começou o autocateterismo quando tinha cerca de 8 anos, mas diz ter muito medo do procedimento desde muito nova, principalmente de inserir a sonda incorretamente e romper seu hímen, causando-lhe dor. Esta visão é compartilhada pela mãe da moça, que durante uma conversa informal anterior à entrevista com a jovem, disse que sempre alertou a filha sobre a importância dos cuidados com o cateterismo, tanto os físicos relacionados a infecções urinárias, quanto o que ela chama de "outros", aqueles relacionados à área de manipulação.

No caso de outra jovem, o autocateterismo como marco da autonomia é interpretado como algo negativo, já que a menina tem medo de ser abandonada pela mãe após dominar seus cuidados. Aqui podemos observar duas importantes questões. Primeiro, observamos a interpretação do indivíduo adoecido da própria doença e dos cuidados que a mesma requer como vínculo central entre o jovem e sua família. Para esta jovem, a doença se torna muito mais do que um atributo que compõe sua identidade pessoal, tornando-se a característica principal que define sua identidade estigmatizada e o cateterismo, o cuidado central que esta doença comporta, sua central fonte de interação. Sendo assim, a doença toma um papel central na dinâmica familiar, tornando-se a delimitadora das interações entre o indivíduo adoecido e sua família. Visível e palpável, a doença e seus cuidados, neste caso, se colocam como o vínculo principal entre mãe e filha, sendo esta a principal fonte de troca entre a menina e sua mãe. A segunda questão que emerge com a análise é a perspectiva de que a vivência da doença e do estigma que a mesma comporta aponta para "ganhos secundários", que permitem que o jovem se isente de inúmeras responsabilidades, protegendo-se emocionalmente da transição natural para uma vida autônoma, além de marcar novamente seu corpo como algo que não lhe pertence. Isto porque a sua concepção corporal está ligada apenas aos cuidados com a doença e as obrigações desagradáveis que a mesma requer. Sendo assim, a experiência do corpo fica limitada a, simplesmente, um corpo adoecido, necessitado de cuidados, e não um instrumento de conexão social, prazer e expressão.

Além de configurar-se como um marco na vida do portador relacionado à sua autonomia, o cateterismo também mobiliza a descoberta e o questionamento sobre a sexualidade muito antes da adolescência, já que compreende a manipulação de uma região altamente associada ao desenvolvimento sexual e a erotização. Esta manipulação intensifica questionamentos e fantasias dos próprios jovens em relação à sua sexualidade, como a presença ou falta de sensibilidade nesta região e a possibilidade de ereção e ou de ejaculação para os meninos, e para a possibilidade de perda da virgindade durante o cateterismo para as meninas.

No começo da vida do portador de espinha bífida, a criança e sua família são confrontadas com um leque de idéias fantasiosas relacionadas à sexualidade devido à repetição do cateterismo. Araújo8 identificou nestas famílias uma série de fantasias em relação a esses procedimentos, como por exemplo, o rompimento do hímen. Tendo em mente que essas crianças se desenvolvem dentro das perspectivas, crenças e valores familiares, podemos observar como os portadores podem internalizar tais fantasias, ou até mesmo a ansiedade gerada na família pelo procedimento. Caso a visão familiar sobre o cateterismo esteja influenciada por idéias estigmatizantes, o portador de espinha bífida possivelmente terá dificuldades futuras, na adolescência e até na vida adulta, no processo de aceitar e cuidar de seu corpo, bem como na compreensão das possibilidades do mesmo.




Deficiente Ciente
« Última modificação: 14/06/2010, 23:15 por migel »
 

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Jovens portadores de deficiência: sexualidade e estigma - Parte 3



Acompanhe, hoje, a terceira parte do artigo“Jovens portadores de deficiência: sexualidade e estigma" das pesquisadoras Ana Helena Rotta SoaresI, Martha Cristina Nunes MoreiraI e Lúcia Maria Costa MonteiroII.

Sexualidade, imagem corporal e as características desacreditáveis
O discurso dos jovens entrevistados também evidenciou que a sexualidade está altamente ligada à imagem corporal dos mesmos, já que a vivência da espinha bífida tem um impacto considerável nas experiências subjetivas e nas relações sociais que se constróem a partir das marcas corporais de seus portadores. Apesar dos jovens afirmarem que as atitudes sociais e culturais negativas que incidiram sobre seus corpos deficientes não afetaram sua percepção corporal, muitos disseram temer não ser aceitos pelo sexo oposto devido a suas diferenças.
Além disso, a procura de parceiros se torna cada vez mais difícil devido ao feedback negativo de experiências anteriores, como podemos observar neste trecho da entrevista com Cameron, um rapaz de 18 anos, que tem como marca da espinha bífida uma forte alteração na marcha, é usuário de calhas e uma adaptação no sapato.
Não estou preparado para estar dentro de um relacionamento. Fui muito rejeitado e esta é a razão pela qual não estou preparado. Muitas meninas me falaram que queriam apenas ser minhas amigas, às vezes funcionava, às vezes não, mas sempre ficava aquele sentimento de rejeição. (Cameron, 18 anos).

A fala de Cameron reflete nitidamente o processo de construção de uma identidade deteriorada pelo estigma, ou seja, pelas marcas da doença. Isto porque, se entendemos a subjetividade como um processo interacional, os intercâmbios sociais negativos, principalmente o sentimento de rejeição, podem causar distorções consideráveis na identidade do jovem. Durante a adolescência, a experimentação com a sexualidade nestas interações sociais percebidas como negativas pode ter ainda conseqüências mais graves, já que durante esta fase o sujeito busca com maior intensidade a aceitação social e o sentimento de pertencer e participar ativamente do grupo.

É importante ressaltar que a construção da identidade pessoal está diretamente vinculada à construção da imagem corporal e da auto-estima, principalmente na fase da adolescência, quando questões relacionadas à intimidade, desejo e sexualidade afloram. Helman9 discute a construção da imagem corporal através das interações sociais: O corpo social é uma parte importante da imagem do corpo, pois fornece a cada pessoa uma base para perceber e interpretar suas próprias experiências físicas e psicológicas. É também o meio através do qual a fisiologia do indivíduo é influenciada e controlada pelos princípios que reagem à sociedade em que vive9.

A partir desta perspectiva, é importante pensar como os jovens portadores de espinha bífida sofrem pressões culturais sobre seu corpo, bem como se sentem quando confrontados com a realidade de que este corpo não se adéqua aos padrões culturais impostos pela sociedade. Esta ligação entre identidade pessoal, imagem corporal e sexualidade está fortemente marcada no discurso das meninas entrevistadas, já que a mulher portadora de deficiência não se encontra isenta das influências culturais e mensagens que constroem um determinado modelo de beleza. Por razão de suas deformidades, a posição como mulher fica praticamente impossibilitada. Assim, ela passa a ser invisível, e as possibilidades de exercer e expressar sua sexualidade de maneira plena, buscando o prazer físico e psíquico, se torna inconcebível pela sociedade e em muitos casos até por ela mesma. É interessante observar que esta visão da mulher portadora de deficiência como um ser incapaz de exercer sua sexualidade transborda até os tratamentos de profissionais especializados nos cuidados de deficientes. Isso pode ser observado no caso de Carmem, que celebra a transformação de seu corpo de menina para um corpo de mulher, porém não encontra apoio dentro do serviço de saúde para acompanhar esta transformação e adequar o material utilizado para suportar sua coluna: Olhe pra mim, meus peitos estão crescendo, quero mostrá-los, mas este colete não me deixa. (Carmem, 17 anos). Podemos acrescentar que esta estratégia de infantilização, ou negação do desenvolvimento corporal, social e psíquico do jovem, apresenta-se como um modo de manter este jovem em uma posição de fragilidade, desqualificado e, conseqüentemente, de "não-pessoa". Dentro desta mesma dinâmica de padrões e cobranças do corpo, encontramos a perspectiva do corpo doente como incapaz não apenas de se enquadrar na sociedade, mas também de engajar-se em um relacionamento ou de inspirar interesse. Um exemplo disso é o relato de Shannon; sua mãe invadia seu espaço, ligando para garotos do colégio, oferecendo a filha como acompanhante para os bailes da escola, já que acreditava que a filha não era capaz de atraí-los sozinha. Ela ligou pra toda a minha agenda. Um cara veio até a minha casa e eu nem sabia quem ele era. Foi vergonhoso. (Shannon, 19 anos). Em um estudo sobre deficiência e imagem corporal, Taleporos e McCabe10 descrevem a imagem corporal da mulher portadora de deficiência a partir de um processo relacional, onde pessoas com deficiências idênticas possuem diferentes sentimentos e atitudes em relação ao seu corpo devido a fatores sociais como educação, suporte social e atitudes sociais reais e percebidas. Deste modo, o indivíduo que cresce com seu corpo sendo desvalorizado pela sociedade aprende a se desvalorizar e, conseqüentemente, cria uma imagem corporal errônea e negativa. No caso dos jovens entrevistados, o feedback da sociedade no que diz respeito à sua sexualidade reforça a mensagem do corpo adoecido como um objeto inadequado, impuro e patético. No caso de Andrea, uma jovem norte-americana, seus companheiros de turma fizeram uma aposta para ver se algum menino tinha coragem de namorá-la. Segundo a jovem, estas situações são comuns para portadores de deficiência e, em seu caso, a sociedade muitas vezes lhe mostrou que seu corpo não se encaixava no ideal social de beleza devido às marcas corporais e, por isso, o lugar de namorada, mulher ou mãe lhe era proibido.

No discurso de jovens brasileiros, a dificuldade em adequar-se aos padrões de beleza se apresenta de maneira mais expressiva. A autopercepção não depende puramente do sujeito, mas também das influências da mediação do outro, bem como do condicionamento cultural, ou seja, dos padrões de beleza que a sociedade, onde o indivíduo se encontra inserido, impõe. É possível perceber que a sociedade brasileira contemporânea demonstra um crescente interesse no alcance do corpo perfeito e cada vez mais mulheres e homens se submetem a torturados esforços para obtê-lo. Segundo Del Priore11, a beleza institui-se como prática corrente, pior, ela consagrou-se como condição fundamental para as relações sociais. Banalizada, estereotipada, ela invade o quotidiano através da televisão, do cinema, da mídia, explodindo num todo o corpo nu, na maioria das vezes ou em pedaços, pernas, costas, seios e nádegas. Nas praias, nas ruas, nos estádios ou nas salas de ginástica, a beleza exerce uma ditadura permanente, humilhando e afetando os que não se dobram ao seu império.

Com os padrões de beleza sendo cada vez mais exigentes, a imperfeição estética do portador de deficiência torna-se ainda mais visível e, conseqüentemente, menos aceitável. No seguinte trecho, quando solicitado a descrever-se, José demonstra sua concepção do corpo perfeito e o desejo de possuí-lo em total oposição à sua realidade: Ah eu diria a maior mentira, sou moreno, alto, forte, tenho olhos azuis. Às vezes no MSN (programa virtual de mensagens instantâneas) eu faço isso. (José, 15 anos). Apesar de não mencionar as marcas decorrentes da espinha bífida, o mesmo jovem narra as dificuldades de encontrar uma namorada devido ao fato de encontrar-se longe de uma estética ideal: Mulher é difícil. Esses dias elas tão muito exigentes, querem um alto moreno, ou loiro de olhos azuis. Aí eu falo: Ah, o que é isso? Mulher é muito exigente às vezes. Quem quer um magro de óculos? (José, 15 anos).

Destaca-se no discurso do jovem a tecnologia de comunicação como uma importante questão para a discussão da administração das marcas estigmatizantes visíveis na atualidade. O uso da Internet como espaço de socialização, principalmente para jovens, cria um universo extremamente tentador, apesar de muitas vezes isolador para os portadores de deficiência. Neste espaço, com auxílio da distância física e da falta do contato visual, o jovem pode engajar-se em diferentes comunidades virtuais, criando a ilusão de amizades, encontros e namoros. Conforme vemos na fala de José, o jovem pode romper com a realidade de sua condição e assumir outra identidade. Contudo, apesar do contato virtual ser cada vez mais comum na atualidade, este pode representar alguns problemas quando se discute o indivíduo estigmatizado. É importante mencionar que, apesar de prazeroso, o universo virtual não substitui as interações sociais tradicionais. Assumir uma identidade social diferente da realidade não se caracteriza como uma estratégia positiva de enfrentamento do estigma vivido.

A imperfeição corporal também se encontra negativamente relacionada à sexualidade devido ao fato de que a exploração da mesma coloca em maior evidência as marcas, desvios e imperfeições. Sendo assim, encontramos a questão da repressão da experiência sexual, do prazer e do contato com o sexo oposto devido à necessidade de manter em segredo atributos desacreditáveis, ou seja, aqueles que são potencialmente fontes de estigma, porém não são visíveis à pessoas próximas ou desconhecidas. Eduarda, que diz não haver despertado para o sexo, apesar de inúmeros relatos de situações que demonstrou este interesse, nos conta que evita ficar excitada já que isto lhe causa a perda de urina e a possível revelação de outras marcas da doença: Eu sou virgem, mas quando tá ficando, beija e fica excitada acontece, e eu evito de ficar excitada. (Eduarda, 19 anos). Esta manutenção voluntária da distância, empregada como estratégia para o encobrimento dos atributos desacreditados, é descrita por Goffman6 como uma técnica de controle de informação que limita a quantidade e a intensidade de experiências do jovem. Recusando ou evitando brechas de intimidade, o indivíduo pode evitar a obrigação conseqüente de divulgar informação. Ao manter relações distantes, ele assegura que não terá que passar muito tempo com as pessoas porque, como já foi dito quanto mais tempo se passa com alguém, maior é a possibilidade da ocorrência de fatos não previstos que revelam segredos6.


Deficiente Ciente

 

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Jovens portadores de deficiência: sexualidade e estigma - Parte Final




Caro leitor, acompanhe hoje, a quinta e última parte do interessante artigo“Jovens portadores de deficiência: sexualidade e estigma" das pesquisadoras Ana Helena Rotta SoaresI, Martha Cristina Nunes MoreiraI e Lúcia Maria Costa MonteiroII. Veja nesse artigo as discussões a respeito da qualidade da vida de jovens portadores de espinha bífida em duas culturas: brasileira e norte-americana.

A sexualidade e interrogação das informações médicas
A pesquisa mostra que os planos futuros dos jovens entrevistados se encontram permeados pela experiência da doença, bem como pela dificuldade da expressão e experiência de sua sexualidade. Identificamos que os jovens portadores de espinha bífida, apesar de verbalizarem o desejo, tanto de realização profissional e pessoal, como de integração social, sentem que a presença da doença em suas vidas age como uma barreira para o alcance destas metas. Seus planos pessoais relacionados à iniciação da vida sexual, casamento e à família se constroem através do enfrentamento de duas barreiras: por um lado, a vergonha e o segredo e, por outro lado, os avanços médicos, principalmente urológicos.

Encontramos o medo da descoberta da marca invisível. Conforme descrito anteriormente, a disfunção urinária e fecal relacionada à espinha bífida, bem como a diminuição da sensibilidade do períneo, são marcas invisíveis da doença, já que se bem cuidadas não podem ser imediatamente percebidas. Para estes jovens, a possibilidade de revelação destes problemas é razão de extrema ansiedade, temor e, conseqüentemente, em alguns casos, a opção pela não procura de oportunidades de relacionamento íntimos: Não saio muito, mas já tive um namorado. Ele não sabia […]. Quando vou ao banheiro, tranco a porta porque tenho que usar o cateter e ninguém nunca vê meu cateter, eu escondo. Como minhas bolsas, ninguém consegue tocá-las, estão sempre comigo. Eu tenho medo de meninos, de ter acidentes e logo ter que contar e eles não me aceitarem. (Raquel, 17 anos).

Além da vergonha como centro das questões da sexualidade devido à percepção de seus problemas urinários e fecais, os rapazes portadores de espinha bífida ainda lidam com as possíveis limitações eréteis ou de ejaculação. Estas se fazem presente em seus discursos como uma grande interrogação, já que muitos nunca discutiram tais problemas com seus médicos, pais ou professores. Assim sendo, estes distúrbios relatados acarretam um sentimento de não possuir o essencial para sua identidade masculina: Tenho medo que não aceitem isso que tenho. Você sabe, os problemas lá de baixo. Não a urina, o outro problema. (Matt, 17 anos).

Esta preocupação e interrogação são um reflexo real dos conhecimentos médicos sobre o tema. Segundo profissionais do CNMC, aproximadamente 75% dos homens portadores de espinha bífida são capazes de ter ereções. Apesar disso, a habilidade de manter a ereção durante a relação sexual é desconhecida. Assim, os planos futuros, já permeados pela experiência da doença, se encontram com as expectativas dos avanços médicos que permitam a relação sexual: Espero ter uma família, se todas essas coisas, ou seja, se estes caras (médicos) conseguirem alguma coisa pra me ajudar. Eles tem que se assegurar que tudo funciona. Basicamente para que eu possa ter relações sexuais (Sam, 20 anos).

No caso das jovens mulheres estudadas, todas demonstraram muitos questionamentos, incertezas e/ou ansiedade em relação à questão da sexualidade ligada à reprodução. Aparentemente, para elas, a falta de informação sobre a hereditariedade da espinha bífida influencia fortemente suas opções de constituir uma família e, em alguns casos, até de procurar um parceiro. Em sua grande maioria, os jovens entrevistados afirmaram não querer filhos, ou estarem em dúvida acerca do tema, visto que temem que os mesmos nasçam com a mesma doença. É importante ressaltar que, em alguns casos, estas preocupações não foram abordadas por profissionais de saúde, e devido ao constrangimento de alguns jovens em colocar seus questionamentos, estes nunca foram discutidos. Os discursos abaixo retratam tais preocupações: Queria ser muito feliz, encontrar um marido, um namorado que sei lá [...]. Eu tenho uma pergunta. Esse problema que eu tenho pode ter problema de não ter filho? Eu tenho medo, porque eu queria saber também se eu tivesse filhos se ele pode ter isso também. (Mariana, 18 anos); e Eu quero, mas eu tenho medo do meu filho ter algum problema. E eu nunca falei com o médico. (Laura, 17 anos).

Considerações finais
A sexualidade do portador de deficiência deve ser abordada de maneira englobante, levando em consideração tanto os aspectos físicos e subjetivos como os valores, crenças e expectativas da sociedade na qual o indivíduo se encontra inserido. Através dos discursos dos jovens brasileiros e norte-americanos, podemos observar que o impacto da diferença na sexualidade é significante, principalmente no que diz respeito ao seu componente corporal e seus desdobramentos, o risco de violência e a administração das informações e a escassez de conhecimento sobre a temática.

Constatou-se no discurso dos jovens a existência de uma carência referente às discussões sobre sexualidade e deficiência física, tanto dentro das famílias quanto dentro de seus serviços de saúde respectivos. Acreditamos que a escassez de informações referentes às possibilidades eréteis, administração da disfunção urinária e fecal no que diz respeito a situações de contato sexual e, finalmente, as possibilidades reprodutivas de jovens portadores de espinha bífida reflete a necessidade da transformação do olhar da comunidade científica e dos profissionais de saúde relativo a esta população. O exercício da sexualidade é um direito de todos e a carência de informações com relação a diversas questões que envolvem a sexualidade do portador de deficiência é um impedimento para o mesmo. Tornam-se necessárias medidas educativas que abordem a saúde do adolescente portador de deficiência de maneira abrangente, garantindo a discussão de temáticas essenciais para o alcance de seus direitos humanos, inclusive seus direitos sexuais. Ao ignorar esta lacuna, contribui-se para a desinformação e insegurança do portador de deficiência, além de alimentar as percepções estigmatizantes em torno das suas possibilidades de vida. Sendo assim, as perspectivas de fragilidade, incapacidade e anormalidade tornam-se "verdades" sociais que limitam as possibilidades futuras destes jovens, tanto no sentido de oportunidades oferecidas quanto no que diz respeito às próprias aspirações e interesses dos mesmos.


Deficiente ciente
 

 



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