Repetição das mesmas atitudes de muitos séculosatrás.
Cada vez que uma pessoa é preterida apenas em razão da sua deficiência, desconsiderando-se sua personalidade e capacidade profissional, o que está ocorrendo, no fundo, é a repetição de atitudes ensinadas e aprendidas há milênios. Na Antiga Grécia, essas crianças eram vistas como seres sem alma e abandonadas para morrer. O Cristianismo considerou-as "um castigo mandado por Deus" e, portanto, dignas de pena. Mas mesmo quando a Medicina desmistificou esses conceitos, a deficiência continuou sendo encarada como uma desgraça a ser evitada, extirpada ou escondida.
Os meios de comunicação de massa e, antes deles, a literatura (vide corcunda de Notre Dame) sempre reforçaram essa idéia. Na televisão, cinema e propaganda, veicula-se a concepção de que para ser amada e feliz é imprescindível que a pessoa seja jovem, bonita, e, obviamente, não tenha nenhuma deficiência física, sensorial ou mental. Só muito recentemente têm surgido histórias onde a heroína paralítica não precisa sair andando, nem o mocinho cego precisa voltar a enxergar para se ter um "final feliz". Filmes como Amargo Regresso, Uma Janela para o Céu, Gaby - Uma História Verdadeira pertencem a essa nova safra.
Mas a lição, segundo a qual para ter direito ao amor e à felicidade é preciso não ser deficiente, foi introjetada por milhares de pessoas, entre elas os próprios deficientes. "Fizemos amor. Ele foi gentil, carinhoso e até ardente. Disse mais de uma vez que me quer do jeito que sou. Fico pensando: não sou rica, logo ele não deve estar comigo pelo dinheiro. Não tenho poder, então também não deve ser pelo status. Certamente ele não está comigo por causa ao meu corpo escultural. Só posso concluir que gosta mesmo de mim. Às vezes, até finjo que acredito, mas, no fundo, duvido", reflete Rosa Maria, 45 anos, professora, tetraplégica (lesão medular que compromete os membros superiores e inferiores).
A questão da auto-estima e auto-imagem passa, necessariamente, por uma via de mão dupla. Se a mulher deficiente não vê a si mesma como atraente e capaz de ser amada, provavelmente nenhum homem reconhecerá nela essas qualidades. Mas se, por outro lado, nenhum homem jamais a tiver olhado como mulher, é quase certo que ela não se acreditará com os mesmos direitos das outras. "Somente quando me vi refletida nos olhos do meu primeiro namorado foi que tive a confirmação de que de fato era uma mulher e poderia ser amada, apesar da minha deficiência", diz Luciana, 42 anos, jornalista, casada portadora de sequelas de pólio, que usa cadeira de rodas.
Interessante observar que os homens deficientes, também submetidos ao mesmo bombardeio publicitário para procurar uma mulher de corpo escultural, nem sempre fazem o papel desse espelho. "Quando ele, paraplégico e impotente, se achou no direito de criticar o meu corpo, eu vi que aquele relacionamento não ia nem começar", relata Helena, 30 anos, que teve sua perna direita amputada depois de um acidente "Conheço vários homens deficientes e fico impressionada com a arrogância de alguns deles. Ninguém menos que a Luíza Brunet serve para eles".
O que ocorre é que, aparentemente, para o homem portador de uma deficiência, é ainda mais importante que para um não deficiente ter uma mulher "tipo avião". Além de ascender socialmente, ele ameniza a carga de preconceitos que recai sobre si, como se quisesse provar: "Sou deficiente, mas sou potente."
É verdade que o mesmo raciocínio poderia ser aplicado à mulher deficiente que busca um companheiro de físico perfeito, mas vale lembrar que as mulheres, deficientes ou não, são ensinadas a valorizar mais outras qualidades no homem, como inteligência, honestidade, bom humor do que a mera aparência física.
Mas se não é agradável para uma pessoa ser rejeitada exclusivamente em razão da sua deficiência, o reverso da medalha, ou seja, ser escolhida por possuir um defeito, também pode ser aterrador. "Sempre pensei que ele estivesse comigo por amor", conta Júlia, 34 anos, publicitária, desquitada, portadora de sequelas de poliomielite (também conhecida por pólio ou paralisia infantil, deficiência que pode comprometer membros inferiores e superiores, preservando a sensibilidade), que usa cadeira de rodas. "Mas um dia ele me disse que, embora preferisse as mulheres bonitas e não deficientes, achava que elas davam muita preocupação, porque viviam sendo paqueradas. Assim, achava mais prático e seguro ter uma mulher como eu. Quando respondi que os homens também me paqueravam, ele disse que até podia ser, pois neste mundo tinha louco pra tudo. Depois disso, meu casamento acabou".
Não superestimar nem subestimar as dificuldades.
Fazer de conta que a deficiência não existe é outra atitude que, longe de ajudar, pode atrapalhar. "Tenho um amigo que acha que todos somos, de certo modo, deficientes e por isso ele faz questão, segundo a visão dele, de me tratar igual a todo mundo", diz Sônia, 19 anos portadora de sequelas de pólio e que anda com aparelhos. "Quando andamos juntos, não se preocupa em acompanhar o meu passo. Além de considerar isso uma falta de delicadeza, acho que no fundo ele não quer ser visto ao meu lado. Preferiria que ele não fosse tão 'destituído' de preconceito e respeitasse o meu ritmo."
Quando tratamos um deficiente como se ele não o fosse estamos desrespeitando suas limitações. Se não é justo superestimar suas dificuldades, também não é correto subestimá-las. Tratar igualmente os desiguais não significa necessariamente fazer justiça. A deficiência, em si, não é ruim nem boa - trata-se apenas de aprender o melhor modo de conviver com ela. Nesse aprendizado, ingredientes como acreditar em si mesmo, olhar o mundo de frente, ver as pessoas em sua dimensão verdadeira e ir à luta sem medo são absolutamente essenciais.
--------------------------------------------------------------------------------
Obs.: Esta reportagem foi publicada pela revista Claudia, da Editora Abril, em junho de 1989.
(*) Reportagem de Ana Maria Morales Crespo, jornalista, portadora de deficiência física, presidente do Centro de Vida Independente Araci Nallin.