Desfazendo mitos para minimizar o preconceito sobre a sexualidade de pessoas com deficiência - Parte 1 Durante as próximas semanas, faremos um estudo do artigo “Desfazendo mitos para minimizar o preconceito sobre a sexualidade de pessoas com deficiência" dos pesquisadores Paulo Rennes Marçal Ribeiro* e Cláudia Bortolozzi Maia**. Acompanhe, hoje, a primeira parte desse artigo.
RESUMO
Este texto aborda a presença de idéias preconceituosas sobre a sexualidade de pessoas com deficiência discorrendo, de modo critico e reflexivo, sobre diversos mitos, tais como: (1) pessoas com deficiência são assexuadas: não têm sentimentos, pensamentos e necessidades sexuais; (2) pessoas com deficiência são hiperssexuadas: seus desejos são incontroláveis e exacerbados; (3) pessoas com deficiência são pouco atraentes,indesejáveis e incapazes para manter um relacionamento amoroso e sexual; (4) pessoas com deficiência nãoconseguem usufruir o sexo normal e têm disfunções sexuais relacionadas ao desejo, à excitação e ao orgasmo;(5) a reprodução para pessoas com deficiência é sempre problemática porque são pessoas estéreis, geram filho scom deficiência ou não têm condições de cuidar deles. A crença nesses mitos revela um modo preconceituoso de compreender a sexualidade de pessoas com deficiência como sendo desviante a partir de padrões definidores de normalidade e isso se torna um obstáculo para a vida afetiva e sexual plena daqueles que são estigmatizados pela deficiência. Esclarecer esses mitos é um modo de superar a discriminação social e sexual que prejudica os ideais de uma sociedade inclusiva.
[float=left]
[/float]INTRODUÇÃO
A sexualidade ampla, independentemente de se ter ou não uma deficiência, existe e se manifesta em todo ser humano. O erotismo, o desejo, a construção de gênero, os sentimentos de amor, as relações afetivas e sexuais, são expressões potencialmente existentes em toda pessoa, também naqueles que têm deficiências (DANIELS, 1981; ANDERSON, 2000; MAIA, 2001; BLACKBURN, 2002;KAUFMAN, SILVERBERG, ODETTE, 2003; COUWENHOVEN, 2007; SCHWIER;HINGSBURGER, 2007).
As expressões da sexualidade são múltiplas e variadas tanto para deficientes como para não-deficientes. Em qualquer caso não é possível determinar se a vida sexual e afetiva será satisfatória ou não e é importante lembrar que em diferentes momentos da vida, dificuldades e facilidades vão ocorrer em maior ou menor grau para todos. Entre as pessoas com deficiências o mesmo acontece e seria injusto generalizar, rotular e estigmatizar quem é a pessoa com deficiência -seus potenciais e seus limites - em função de rótulos, sem considerar o contexto social, econômico, educacional em que o sujeito se desenvolve e sem considerar adversidade entre as pessoas com deficiências. As pesquisas, portanto, sobre sexualidade e deficiências têm divulgado que não é possível afirmar a priori as dificuldades que elas terão ou não no campo sexual (DANIELS, 1981; WOLF;ZARFAS, 1982; SALIMENE, 1995; PINEL, 1999; BAER, 2003; KAUFMAN,SILVERBERG, ODETTE, 2003; GIAMI, 2004; MAIA, 2006; COUWENHOVEN, 2007;SCHWIER; HINGSBURGER, 2007). Apesar dessas constatações, o que prevalece nos discursos de leigos, familiares e da comunidade é a generalização de idéias preconceituosas a respeito da sexualidade de pessoas com deficiência como se essa fosse sempre atípica ou infeliz. Essas idéias são baseadas em estereótipos sobre o deficiente mantidos por crenças errôneas que o colocam como alguém incapaz e limitado.As políticas públicas mundiais têm lutado pelos direitos de acesso à educação, à saúde, e à vida social daqueles com deficiência, mas pouco se tem feito ou divulgado no sentido de incentivar a inserção afetiva e sexual dessas pessoas.Evidentemente que há, atualmente, um avanço considerado de pesquisas, nacionaise internacionais, sobre a sexualidade e diferentes deficiências, cognitivas, sensoriaise ou físicas, relacionadas à própria construção das subjetividades individuais dessas pessoas em diferentes momentos da vida. No entanto, nesse texto, procura-se tratar da temática de modo abrangente tendo como pano de fundo a construção socialda sexualidade e da deficiência, priorizando não a especificidade da deficiência, mas o fato de ela, em qualquer manifestação, se tornar algo deveras estigmatizante.
SEXUALIDADE, DEFICIÊNCIAS E OS PADRÕES DE NORMALIDADE SOCIAL
O conceito de sexualidade foi usado no século XIX para se referir a saberes sexuais decorrentes dos estudos sobre os significados das práticas sexuais que foram construídas culturalmente (CHAUI, 1985; FOUCAULT, 1988; MOTTIER, 2008). É um conceito amplo que envolve a manifestação do desejo e sua representação no estabelecimento de relações que envolvem o afeto, a comunicação,a gratificação libidinosa e vínculo afetivo entre as pessoas e cuja expressão dependede influências culturais, da sociedade e da família, por meio de ideologias e crenças morais, envolvendo ainda questões religiosas, políticas etc. (DANIELS, 1981;CHAUÍ, 1985; RIBEIRO, 1990; ANDERSON, 2000; BLACKBURN, 2002;COUWENHOVEN, 2007).
A sexualidade humana refere-se aos sentimentos, atitudes e percepções relacionadas à vida sexual e afetiva das pessoas; implica a expressão de valores,emoções, afeto, gênero e também práticas sexuais e é essencialmente histórica e social.Como um conjunto de concepções culturais, a sexualidade extrapola o conceito de genitalidade, pois abrange também as práticas sociais, os costumes diversos e as ideologias relacionadas a essas práticas (CHAUÍ, 1985; RIBEIRO, 1990; ANDERSON,2000; BLACKBURN, 2002; SCHWIER; HINGSBURGER, 2007).
Só é possível compreender o desenvolvimento das pessoas e a construção da sua sexualidade individual tomando-se por base a construção da sexualidade ampla, culturalmente determinada e que culmina no modo como percebe-se, julga-se e orienta-se o desenvolvimento das práticas sexuais das pessoas(FOUCAULT, 1988). Isso significa ainda considerar as concepções repressivas que durante anos determinaram as práticas sexuais diversas e o modo como se configuram o masculino, feminino, o desejo, a resposta sexual, as funções do sexo,o enamoramento, etc.
A partir de regras nem sempre explícitas e claras, estabelecidas pela sociedade em diferentes culturas, as pessoas aprendem o que seria o desejável em relação à maneira que devem se comportar socialmente. Isso também ocorre em relação à sexualidade humana o que, além de colocar certas atitudes, sentimentos e ações no campo da normalidade em contraste com outros comportamentos considerados não-normais, ainda vinculam essa normalidade à promessa de felicidade idealizada (COSTA, 1998; MAIA, 2009a).
Os padrões para a sexualidade normal e feliz que não podem ser pensados separadamente do contexto social, econômico e cultural e se revelam em diferentes meios: na televisão, nas propagandas, nas telenovelas, nas narrativas,na literatura, nos jornais, nos discursos, na música, dentre outros. Nesse sentido,conceitos subjacentes à sexualidade, como beleza, estética, desempenho físico,função sexual, gênero, saúde, são também construídos socialmente e podem diferirem função da cultura e das condições em que esses fenômenos se revelam (COSTA,1998; STOLLER, 1998; MAIA, 2009a). Essas concepções aparecem como regras que,segundo Chauí (1985) e Foucault (1988) direcionam o que não devemos e o que devemos fazer em relação aos comportamentos e sentimentos sexuais e, por isso,se tornam repressivas e normativas.
Do mesmo modo como a sexualidade, a deficiência é um fenômenosocialmente construído na medida em que o julgamento sobre a diferença (162MAIA, A.C.B.; RIBEIRO, P.R.M.Rev. Bras. Ed. Esp., Marília, v.16, n.2, p.159-176, Mai.-Ago., 2010.) impregnada ao corpo do deficiente dependerá do momento histórico e cultural e,em geral, a avaliação social que se tem da deficiência é a de que ela explicita um corpo não funcional e imperfeito e daí impõe ao sujeito uma desvantagem social (AMARAL, 1995, TOMASINI, 1998; EDWARDS, 1997; OMOTE, 1999; AMOR PAN,2003; MAIA, 2006; SIEBERS, 2008). Apesar dos avanços, a partir do paradigma da inclusão social, as concepções de deficiência e diferença são também socioculturaise ainda se configuram como marcas de descrédito social.
A desvantagem social atribuída aos estigmatizados pela deficiência configura-se num grande obstáculo à vida em sociedade (AMARAL, 1995). Silva(2006) comenta que ao se estigmatizar a pessoa pela sua deficiência, corre-se o risco de estabelecer um relacionamento com o rótulo e não com o indivíduo e isso levaria a uma idealização do que seria a vida particular de pessoas com deficiência:a vida dos cegos, dos surdos, dos cadeirantes, etc., é explicada em função dadeficiência, o que seria um modo simplista de compreender a questão. O próprio sujeito estigmatizado incorpora determinadas representações e se identifica com essas tipificações.
Além disso, ser deficiente quer dizer que se é categorizado como tal em função de conceitos de normalidade social que são históricos. Os padrões que representam a normalidade social não são apenas relacionados à capacidade produtiva e funcional (BIANCHETTI, 1998; TOMASINI, 1998; OMOTE, 2004), mas também aos relacionamentos afetivos e sexuais.
Desfazendo mitos para minimizar o preconceito sobre a sexualidade de pessoas com deficiência - Parte 2 [float=left]
[/float]
MITOS E CRENÇAS EQUIVOCADAS SOBRE A SEXUALIDADE DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
Os mitos sobre a sexualidade e deficiência referem-se às idéias, discursos,crenças, inverdades, que são ideológicas e que existem para manter e reproduzir as relações de dominação de uns sobre os outros.
Não se trata aqui de mitos antropológicos citados como uma linguagem utilizada por diferentes culturas para explicar os fenômenos da natureza e do mundo (Highwater, 1992; Nunes, Filho,1994; Furlani, 2003) e sim de mitos como uma expressão que identifica o conjunto de idéias preconceituosas e limitadas; em geral, crenças reproduzidas sem fundamento, apenas baseadas em preceitos ou pré-conceitos e atribuídas a um grupo específico em determinada condição. Neste caso específico, tratam-se daquelas idéias que são generalizadas ao fenômeno da sexualidade e da deficiência e que traduzem um modo estereotipado de compreender a questão. Furlani (2003, p.18) comenta que há idéias de cunho político e ideológico que podem estar impregnadas nos diversos mitos, conferindo-lhes “potencialidade em reforçar posturas discriminatórias e sentimentos preconceituosos, frente ao seu objeto”.
Para Silva (2006, p.425), a propensão a generalizar utilizando estereótipos sobre as possíveis problematizações, no caso da sexualidade de deficientes, é uma simplificação que “responde à demanda imediata do pensamento, valendo-se de conteúdos e juízos de valor incorporados,conforme a condição e posição hierárquica social".
Conhecer e esclarecer os mitos e idéias errôneas sobre sexualidade depessoas com deficiências é uma tarefa importante porque essas crenças podem afetar a todos, quando por meio delas se incentivam as relações de discriminação e de dominação que podem ocorrer entre não-deficientes sobre os deficientes, entre homens com deficiência sobre as mulheres com deficiência, entre pessoas com deficiências menos comprometedoras sobre as que têm maior comprometimento, etc. Anderson (2000), Baer (2003) e Kaufman, Silverberg e Odette (2003) argumentam que se essas crenças são assimiladas por pessoas deficientes isso poderá aumentar seus sentimentos negativos de desvalia e inibir a expressão de uma sexualidade favorável. Se elas são assimiladas por pessoas não-deficientes isso pode justificaro modo limitado como se julgam os deficientes: uma visão da vida sexual e afetiva assexuada, frágil e desinteressante.
A reprodução dos mitos tem a ver com o medo que as pessoas têm diante do estigma da deficiência (Goffman, 1982) a partir de um corpo marcado pela deficiência e fragmentado pela imperfeição que se desvia tanto dos padrões de normalidade vigentes e que colocam as pessoas na sua condição de vulnerabilidade e diante da inevitável fragilidade humana. Muitas pessoas não deficientes acreditam que nunca serão deficientes e os deficientes são, portanto,vistos como essencialmente diferentes deles. Ao distanciar de si mesmos tudo que se relacione com deficiência explicita-se uma atitude de negação, um mecanismo subjetivo em relação ao outro porque aquele corpo remete ao medo de que o corpo normal, que é frágil e vulnerável, se identifique com o corpo deficiente, e porque essa é uma condição possível para todos (Crochik, 1997; Kaufman,Silverberg; Odette, 2003; Silva, 2006).
Segundo Silva (2006, p.425), o preconceito materializa um mecanismode defesa diante do encontro entre as pessoas quando um é a ameaça ao outro porser algo novo, diferente e temeroso e, segundo a autora, em decorrência disso,temos a propensão a generalizar utilizando estereótipos sobre as possíveis problematizações que “são simplificações que respondem à demanda imediata do pensamento, valendo-se de conteúdos e juízos de valor incorporados, conforme a condição e posição hierárquica social”. Para Crochik (1997), o indivíduo preconceituoso fecha-se em suas opiniões, o que o impede de conhecer efetivamente aquilo que ele teme. Por isso ele afasta o outro de si para preservar sua estabilidade psíquica porque ao se colocar diante do que teme como alguém possível de identificação, os sentimentos de humilhação e fragilidade vêm à tona e, parece mais fácil, manter atitudes de discriminação e exclusão do outro não-normal ao invés de reconhecer esse mecanismo emocional que nos reconhece como semelhantes e humanos. Silva (2006, p.426) comenta que:
O preconceito às pessoas com deficiência configura-se como um mecanismode negação social, uma vez que suas diferenças são ressaltadas como umafalta, carência ou impossibilidade. (...) A estrutura funcional da sociedadedemanda pessoas fortes, que tenham um corpo ‘saudável’, que sejam eficientespara competir no mercado de trabalho. O corpo fora de ordem, a sensibilidade dos fracos, é um obstáculo à produção. Os considerados fortes sentem-seameaçados pela lembrança da fragilidade, factível, conquanto se é humano.
Em geral, esses mitos descrevem idéias que são tomadas como gerais a todo deficiente, por exemplo, tornar uma limitação específica em totalidade, isto é,compreender toda a pessoa como deficiente e não apenas algo específico ou relacionado a ela, dispor de explicações lineares e causais, como se tudo o que ela fizesse ou fosse tivesse a ver com as deficiências e também pelo temor ao contágio,como se ao conviver com alguém com deficiência pudesse haver uma contaminação desse infortúnio (Amaral, 1995; Silva, 2006). Vários autores e pesquisadorestêm comentado sobre diferentes mitos e crenças a respeito da sexualidade, quandos e tratam de pessoas com deficiências (Amaral, 1995; Gherpelli, 1995;Salimene, 1995; Glat; Freitas, 1996; Pinel, 1999; Anderson, 2000;França-Ribeiro, 2001; Denari, 2002; Amor Pan, 2003; Baer, 2003;Kaufman; Silverberg; Odette, 2003; Giami, 2004; Maia, 2006;Couwenhoven, 2007).
Podemos perceber que os mitos abrangem os modelos normativos relativos à sexualidade (vida social, afetiva e amorosa que envolve os relacionamentos, a auto-imagem, questões de estética e atratividade, sedução,questões de gênero) e às práticas sexuais (desempenho sexual funcional e o sexo considerado saudável). Em todos os casos, baseiam-se em modelos normativos que são ideológicos e construídos socialmente e prometem uma felicidade idealizadae exagerada a todos nós, mas que atinge, diretamente, àqueles que vivem com uma deficiência visível e por ela são estigmatizados.
Enfim, as crenças sobre a sexualidade das pessoas com deficiências em geral, referem-se a um modo generalizado de ver o outro estigmatizado pela deficiência (VASH, 1988; AMARAL, 1995; MAIA, 2006; SILVA, 2006). A seguir,comentaremos sobre eles tentando refletir sobre as razões porque defendemos que tratam de concepções preconceituosas e limitantes para a expressão plena da sexualidade humana.
Fonte:
http://74.125.155.132/scholar?