iacess

ergometrica

Anuncie Aqui

Liftech

mobilitec
onlift

Autopedico

Invacare

TotalMobility

Rehapoint
myservice

Tecnomobile

Liftech

Multihortos

Anuncie Aqui

Autor Tópico: A Relação Afetivo-Sexual de pessoas dotadas de visão com pessoas cegas  (Lida 2148 vezes)

0 Membros e 1 Visitante estão a ver este tópico.

Offline Aislin

 
Introdução


Ao lançar um olhar ao percurso dessa viagem, desde os primeiros momentos de perplexidade diante do fenômeno sexualidade da pessoa cega até o presente, sinto que o caminho da indagação é um eterno recomeçar. Nem chego e já estou pronta para novas e infinitas partidas.

Por essa perspectiva, ancoro a possibilidade de vir a compreender a relação afetivo-sexual de pessoas dotadas de visão com pessoas portadoras de deficiência visual. No entanto, faz-se necessário explicitar o percurso e as paragens realizadas até o momento para o leitor.

Ao dirigir minha preocupação à sexualidade de deficientes visuais, defrontei-me com uma leitura escassa, com preconceitos e estigmas que, quando vivenciados por deficientes, em especial o visual, adquirem proporções incalculáveis, especialmente pela ênfase dada por nossa cultura aos padrões estabelecidos para o feio e o belo, o normal e o anormal, o velho e o jovem. A ausência de estudos que revertam as origens desses tabus, e que lancem questionamentos na busca de poder revisar novas práticas morais e sociais, para serem legadas a novas gerações, provocam-me a prosseguir nessa caminhada.

Aqui ocorreu minha primeira paragem e produzi em co-autoria o artigo “A Sexualidade e o Significado do Olhar” (Bruns & Leal Filho, 1994). Neste artigo, questionamos o fato de não ser a ausência do sentido visual em si que limita ou cer­ceia a sexualidade da pessoa portadora de deficiência visual. A prática da sexualidade está submetida a uma série de normas, valores e regras repressivas, elaboradas ao longo do processo histórico, ideológico, político e cultural de cada sociedade. Desse modo, videntes e não-videntes são lançados em um mundo já construí­do e, pelo processo de socialização, internalizam essas regras, normas, repressivas ou não, as quais contribuem para a elaboração da própria identidade (processo que só se extingue com a fini­tude, a morte).

Nesse sentido, videntes e não-videntes são forjados pelos mesmos valores morais e ideológicos. Entretanto, o modo como se relacionam com estes padrões, normas e valores, ou seja, como expressam a própria sexualidade poderá facilitar e/ou dificultar a prática da sexualidade, a qual retrata a história da pessoa, suas experiências, desejos, fantasias e frustrações, sendo, a um só tempo, única e universal.

Sabemos, por experiência própria e/ou pelas pesquisas realizadas por especialistas da área como Chauí (1984), Bernardi (1985), Bruns & Grassi (1991, 1993), Silveira (1993), Trindade & Bruns (1999), que a ausência de orientação sexual, seja na família, seja na escola, perpassa os séculos. Os tabus, preconceitos e estigmas fazem-se presentes em nossos atos, gestos, atitudes, expressos nos modos de ser e de aparecer, materializam e tornam-se práticas sociais institucionalizadas.

Nesse momento, ocorreu uma segunda paragem e elaborei o artigo “Educación Sexual y Deficiencia Visual: El Dialogo del Silencio por El Silencio del Dialogo” (Bruns, 1998), cujo objetivo foi conhecer e compreender a orientação sexual propiciada por mães dotadas de visão a filhos(as) cegos(as). Por intermédio da entrevista compreensiva com 20 mães cujos filhos são portadores de deficiência visual, foi possível perceber que não existe diálogo acerca da sexualidade com os filhos deficientes, especialmente em razão da dificuldade de abordar o tema e também pela idéia bastante comum que seja assexuado o deficiente visual. Urge um trabalho com os familiares de maneira a despir de seus olhos preconceitos em relação à sexualidade dos que possuem necessidades especiais.

De um modo geral, a história da civilização se repete sempre na educação de cada criança, quando se espera que ela se ajuste de modo satisfatório às normas e às leis sociais. As próprias relações com o recém-nascido seguem um padrão que cada sociedade estabeleceu como correto. Para a organização social, aliás, habitualmente a família é uma miniatura da sociedade.

Segundo Bernardi (1985, p. 25), “A família tende a imprimir na personalidade dos subordinados uma determinada estrutura psíquica, aprovada pela sociedade e, para isto, vale-se de meios sugeridos pela própria sociedade”. Que estrutura os pais de deficientes neles imprimem? Imprimem nos jovens que são incapazes, “coitadinhos”, valores, aliás, aplaudidos e mantidos pela sociedade.

Assim, a dificuldade e/ou facilidade em lidar com a própria sexualidade é estabelecida pela própria história de cada sociedade que cria e recria normas de repressão, estatutos para controlar o exercício saudável da sexualidade.

Por esse prisma, constatamos que, de um modo geral, a sexualidade de videntes ou não-videntes permanece ocultada, embora estejam ocorrendo muitas modificações nestas últimas décadas, como por exemplo, a busca de inclusão do cego no convívio social em escolas e outras instituições, adaptações arquitetônicas em prédios públicos e privados, bem como em ruas para a passagem segura daqueles que necessitam de cuidados especiais. Mesmo com estas mudanças, que, sem dúvida contribuem para ampliar o mundo de experiências do deficiente visual, mudanças outras são ainda necessárias, tanto no universo familiar, quanto no universo escolar, especialmente com relação à orientação sexual.

Chegamos ao final do século com descobertas fantásticas em relação às ciências exatas, mas, paradoxalmente, em geral os cursos de Medicina, Psicologia, Biologia, Fisioterapia, Pedagogia não ancoraram em seus currículos uma disciplina sequer sobre a sexualidade humana.

Silveira (1993) realizou um estudo sobre conhecimentos, comportamentos e atitudes de alunos de Medicina diante da sexualidade e concluiu que o aluno desse curso difere do aluno de outros cursos, apenas em relação a conhecimentos técnicos para atuar junto ao paciente. Não possui uma visão ampla sobre a sexualidade que lhe possibilite um questionamento além das informações que a técnica permite. E sabemos que só a técnica não dá conta de explicitar as conotações, as nuanças de significados que são apropriados e materializados em cada corpo sexualizado, que carrega as “marcas” arquetípicas de sentimento de culpa cristalizadas ao longo da história.

Essas “marcas”, quando experienciadas por um corpo que não atende aos padrões ditos “normais”, adquirem proporções incalculáveis e os deficientes são, então, punidos duplamente. Marginalizados ao longo da história, carregam o estigma de incapazes e “coitadinhos”. Em conseqüência, são excluídos da possibilidade de vivenciarem o prazer, por não representarem os modelos estéticos estabelecidos pela “indústria da beleza”.

Isso ocorre porque, ao olharmos para a pes­soa portadora de deficiência, vemos o que lhe falta, vemos sua incompletude. A pessoa torna-se, nesse caso, apenas um deficiente, pois pomos em destaque uma parte sua e não o seu todo.

Esse olhar fragmenta, dicotomiza, avalia, julga e exclui. Nesse olhar, subjaz um modo preconceituoso de nos relacionarmos conosco e com o outro, o qual é mantido e alimentado pela ideologia do déficit.

Essa realidade lançou-me às seguintes indagações: o que leva uma pessoa dotada de visão a envolver-se sexualmente com uma pessoa deficiente visual? O que move uma pessoa dotada de visão a ultrapassar os preconceitos, os rótulos e os estigmas estabelecidos pela classe social e/ou grupo social e vir a estabelecer uma relação afetivo-sexual com um(a) deficiente visual? Estas indagações e outras mais passaram a remeter-me a uma única questão que assim se apresenta: que é isto, o relacionamento afetivo-sexual de pessoas videntes com pessoas cegas?

Buscar a compreensão desse relacionamento, isto é, caminhar ao encontro da estrutura desse fenômeno, tomando por base os discursos das pessoas videntes é o propósito desta pesquisa. Segundo Heidegger (1964, p. 99), “o discurso tem o mesmo nível existencial de origem que o sentimento da situação e da compreensão”. Daí ser, por seu intermédio, que se dá o acesso à realidade vivenciada pelos entrevistados no decorrer desta pesquisa. Neste sentido, o discurso é o que nos possibilita o acesso às experiências vividas e nos evidenciará o fenômeno a ser desvelado: a vivência afetivo-sexual da pessoa dotada de visão com as cegas.

Nos dizeres de Forghieri (1993, p. 27), “a experiência cotidiana imediata é o cenário dentro do qual decorre a nossa vida; ser no mundo é a sua estrutura fundamental”.

Isto significa dizer que a pessoa e o mundo constituem uma unidade inseparável e originária. Desse modo, a identidade de cada pessoa expressa a relação estabelecida consigo própria, com os demais seres e com o mundo no decorrer de sua existência. Essa realidade pode ser descrita e vir a possibilitar a compreensão de momentos vividos e que foram significativos para a sua existência.

Nos dizeres de Merleau-Ponty (1971, p. 08):

“O mundo não é um objeto do qual possuo em meu íntimo a lei da constituição. Ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explicitadas. A verdade não “habita” somente o “homem interior”, ou mais precisamente, não há homem interior, o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece”

Por essa ótica abrangente, o homem é um ser com infinitas possibilidades, concebido segundo uma perspectiva dialética, o que vale dizer que o mundo e o homem não existem separadamente. Para compreender esta relação em profundidade, todavia, faz-se necessário descrevê-la de modo a explicitar dialeticamente a estru­tura do homem e a estrutura do mundo, uma vez que a existência de um envolve a existência do outro. Não há “homem interior”, como não há “mundo exterior”: a estrutura fenomenal é ser-no-mundo.

Nesse sentido é que visualizo essa interessante faceta da sexualidade não só das pessoas dotadas de visão, mas também daquelas que são cegas pois, ao falarem do que buscam e/ou do que buscaram ao se relacionarem sexualmente com os deficientes visuais, poderão explicitar nuanças significativas da sexualidade destes últimos.

Parto, portanto, da premissa de que a sexualidade é a forma pela qual o humano realiza a existência de seu corpo, modo este pelo qual entramos em contato com o mundo e que nos percebemos “sendo”. Não há outro meio de conhecer o corpo humano senão vivenciando-o. Assim, o corpo simboliza a nossa existência porque a realiza e é sua atualidade. Por isso, ao falarmos de sexualidade, remetemos nosso pensamento ao corpo.

“A sexualidade é a parte integrante do nosso self total. Ela não é apenas expressão do corpo biológico, não é apenas resultado do fun­­cio­namento glandular. Ela é a expressão do ser que deseja, que escolhe, que ama, que se comunica com o mundo e com o outro. Ela é uma ‘linguagem’ que será tanto mais humana quanto mais pessoal for.”

Aranha & Martins (1981, p. 348).

Outra fonte esclarecedora em relação à sexualidade apresenta-se em Merleau-Ponty (1971, p. 168). Para esse fenomenólogo, a “sexualidade é o que faz com que o homem tenha uma história. Se a história sexual de um homem dá a chave de sua vida, é porque na sexualidade do homem se projeta sua maneira de ser com relação ao mundo, isto é, com relação ao tempo e aos outros homens”.

O corpo materializa a presença do humano no mundo e dele participa conjuntamente com sua mente, sua capacidade intelectual, emocional, numa relação dialética constante e a sexua­lidade é a dimensão que mais abrange a sua totalidade. É nela que está contida a energia vital que nos remete à origem do existir, desde o julgar dos instintos até a trans­cendência de diferentes níveis de experiências.

“O homem não é apenas o que é, mas aquilo que deseja ser, deseja tornar-se. Ao longo de seu tempo vivido, o humano elabora o seu projeto de vida o qual implica em inúmeras possibilidades e modificações que ocorrem nos relacionamentos entre as pessoas.”

(Bruns, 1992, p. 11).

Existir é estar em constante movimento, é perceber que o viver está repleto de aspectos que se opõem, mas que são coexistentes; vive-se e morre-se simultaneamente, pois, a cada dia que passa, ao projetar-se, o ser visualiza múltiplos e inúmeros horizontes, assim como caminha para a finitude, para a morte.

Por esse prisma, busquei na teoria dialógica de Martin Buber a trilha para desvendar os significados que as pessoas dotadas de visão atribuíram ao estabelecerem relacionamentos afetivo- sexuais com as pessoas cegas.
 

Offline Aislin

 
Perspectiva do diálogo buberiano


Segundo Buber (1979), a pessoa humana desenvolve, ao longo de sua existência, duas maneiras básicas de relacionar-se (EU-TU e EU-ISSO), sendo a relação EU-TU a que expressa a manifestação mais intensa e sintonizada de ser-no-mundo.

“A relação com o TU é imediata. Entre o EU e o TU, não se interpõe nenhum jogo de conceitos, nenhum esquema, nenhuma fantasia, e a própria memória se transforma no momento em que passa dos detalhes à totalidade. Entre o EU e o TU, não há fim algum, nenhuma avidez ou antecipação, e a própria aspiração se transforma no momento em que passa do sonho à realidade. Todo meio é obstáculo. Somente na medida em que todos os meios são abolidos, acontece o encontro.”

(Buber, 1979, p. 13)

Na premissa EU-TU, a pessoa se envolve, se integra; no EU-ISSO, há o distanciamento, a impessoalidade, o descompromisso. Para Buber, o humano realiza-se como gente somente no relacionamento com o TU. Na relação EU-ISSO, o relacionamento ocorre entre sujeito-objeto, sendo apenas uma atitude seccional, departamental, utilitária.

Valendo-me dessa elucidação, a relação amorosa acontece no encontro entre o EU e o TU na qual a pessoa humana se liberta de preconceitos, estigmas de belo e feio, normal e anormal, tão comuns ao nosso cotidiano. Essa vivência revela-se intensa e completa.

Nos dizeres de Bruns & Almeida (1994, p. 75), “essa viagem de descoberta é vivida a dois, pois, ao permitir o desvelar da pessoa amada, desvelo-me também a ela. Nessa fusão se completam e, por instantes, experienciam a eternidade. Instantes que não são olvidados jamais”.

Valendo-me dessa perspectiva teórica elucidada por Buber, proponho-me a investigar o relacionamento afetivo-sexual de pessoas videntes com as pessoas portadoras de deficiência visual.



Em direção ao processo de análise da redução fenomenológica


A fenomenologia é entendida como um pensar filosófico, voltado para a compreensão e a interpretação dada pela consciência aos fenômenos. Fenômeno é tudo o que se mostra, o que se manifesta, o que surge para uma consciência que lhe atribui significado. Assim, a consciência humana em sua existência concreta é finita, temporal e histórica. O processo de análise da redução fenomenológica husser­liana possibilita-me caminhar em direção à compreensão da estrutura dos relacionamentos afetivo-sexuais de pessoas dotadas de visão com as pessoas cegas.

Assim, é “sendo no mundo” com outros homens e outros seres que o homem se projeta, orienta-se, enfim, constrói sua identidade; existir é estar na dança desse movimento. Ser consciente dessa dialética é uma das possibilidades de ser no mundo. É com base nessa vivência e na consciência de sua finitude que o homem atribui sentido e significação à sua existência e ao seu momento histórico.

Dessa perspectiva, a fenomenologia possibilita ao pesquisador acesso à consciência desses modos de ser no mundo, uma vez que os acontecimentos culturais, sociais ou ecológicos não existem em “si mesmos”, como se fossem realidades objetivas, neutras, mas, sim, para uma consciência, para um ser que lhe atribui significados, os quais envolvem a percepção que a pessoa possui de si mesma, de sua relação com os outros e com o mundo num determinado momento histórico.

Para Husserl, o pesquisador, ao realizar a redução fenomenológica, assume uma postura de distanciamento do fenômeno que está sendo indagado, isto é, coloca-o em suspensão. Nos dizeres de Forghieri (1993, p. 15):“A redução não é uma abstração relativamente ao mundo e ao sujeito, mas uma mudança de atitude – da natural para a fenomenológica – que nos permite visualizá-los como fenômeno, ou como constituintes de uma totalidade, no seio da qual o mundo e o sujeito revelam-se, reciprocamente, como significações”.

Assim, a consciência humana, em sua existência concreta, é finita, temporal e histórica, e dirige-se intencionalmente para o mundo numa relação dialética. A redução fenomenológica possibilita ao pesquisador o acesso a essa consciência, o que significa chegar à realidade desprovido de estereótipos, estigmas, ou seja, abandonar os preconceitos e pressupostos em relação ao fenômeno interrogado.

Valendo-me desses esclarecimentos, escolhi a trajetória fenomenológica proposta por Martins & Bicudo (1989) e Martins (1992) – a qual consiste nos seguintes passos: Descrição, Redução, Compreensão-interpretação para orientar esta pesquisa, porque seus pressupostos epis-temológicos respondem à minha visão de mundo neste momento histórico, e também por possibilitar-me o desvelamento do fenômeno. A relação afetivo-sexual de pessoas dotadas de visão normal com pessoas cegas e de ter acesso à vivência original dessa experiência e aos significados atribuídos a esta relação.

A seguir, esclareço no que constituem estes passos:

Descrição ou relato: constitui um dado de im­portância significativa no desenvolvimento da pesquisa fenomenológica não comportando um estilo literário, normas, regras, listas de palavras ou sentenças que devam ser usadas, isto é, consiste em relatos espontâneos dos entrevistados acerca de suas experiências. As descrições pertinentes são analisadas pelo pesquisador num estado e/ou postura de redução fenomenológica.

Redução fenomenológica: consiste num estado de alerta, de suspensão de crenças e de preconceitos em face do fenômeno interrogado, o que não supõe uma atitude de neutralidade. Este momento constitui o que Husserl chamou de epoché que significa uma saída da maneira comum de olhar o fenômeno, ou seja, é uma postura que visa a abandonar os preconceitos e crenças em relação ao fenômeno que está sendo interrogado. O objetivo desse momento da pes­quisa é colocar em evidência as unidades de significado, ou seja, reconhecer os momentos dos discursos considerados significativos.

Compreensão fenomenológica: após a identificação das unidades de significado, buscam-se as convergências e/ou divergências entre elas. A compreensão, que envolve sempre uma interpretação, delineia, nesta pesquisa, o mo­do como pessoas dotadas de visão normal vi­venciam seus relacionamentos afetivo-sexuais com pessoas cegas.


Percurso em direção aos entrevistados


Contactei 13 pessoas videntes, sendo 10 mulheres e 3 homens, com idade entre 20 a 38 anos, com grau de escolaridade do 1º grau completo ao nível universitário. O propósito foi abarcar a maior faixa etária possível visando a possibilitar as evidências de vivências em diferentes momentos, bem como influências culturais, educacionais, políticas e sociais de cada momento da vida dos participantes. A escolaridade mínima – ensino fundamental – foi também adotada como critério, tendo-se em vista que esses participantes pertencem ao nível sócio-econômico de média renda, e por considerar ser essa a classe cujos valores, preconceitos e crenças são mais cristalizados. Desse total, apenas 5, sendo 1 homem e 4 mulheres, aceitaram participar deste estudo; os demais assim se expressaram: 3 mulheres e 2 homens justificaram sua não-participação e 3 negaram-se a participar da pesquisa.

Todos os contatados foram informados do objetivo da pesquisa, bem como da preservação de suas identidades, ato comum no trabalho científico. Nesse momento, foi ressaltada a importância social e política do estudo.

No primeiro contato, agendávamos dia e hora para realizarmos as entrevistas. O cumprimento dessa etapa por parte dos entrevistados foi realmente difícil, mesmo sendo eles localizados por meio de amigos e/ou conhecidos. Uma semana antes da entrevista agendada, eram contatados, via telefone, para reconfirmação da hora combinada. Aqui iniciavam-se as seguintes justificativas:

1. “Eu não posso: surgiu outro compromisso”. Sexo masculino, solteiro, 26 anos, grau de escolaridade: ensino médio.

2. “Resolvi não participar”. Sexo feminino, solteira, 23 anos, grau de escolaridade: ensino médio.

3. “Ah! Eu mudei de idéia e não quero falar disso... Isso já foi”. Sexo masculino, solteiro, 31 anos, grau de escolaridade: ensino médio.

4. “... eu pensei e não quero falar mais daquele tempo”. Sexo feminino, solteira, 38 anos, grau de escolaridade: ensino fundamental.

5. “Ele ficou aborrecido... pensa que vou falar das dificuldades dele ser cego... ele ficou inseguro, é difícil para mim, não quero desentendimento entre nós”. Sexo feminino, casada com um deficiente visual completo, 39 anos, grau de escolaridade: universitário.

Registrei tais justificativas por pensar que elas ampliariam, com certeza, os horizontes de compreensão do fenômeno que está sendo interrogado. Especialmente se considerarmos que o silêncio desvela também o nosso modo de ser no mundo, como também as lacônicas expressões verbalizadas. Dessa perspectiva, senti que esse modo de ser no mundo poderia oferecer pistas para compreender mais uma das infinitas facetas da sexualidade humana.

A recusa para não desvelar facetas dessas vivências sexuais lança-nos à seguinte indagação: o que oculta ao não querer “falar daquele tempo”? ou não querer “falar mais disso”. Segundo Buber (1979, p. 82), ”o homem se desvela ali onde não há lugar para revelação”. Nesse sentido, na pessoa, instaura-se um confronto consigo mesma que não pode ser relação, presença, reciprocidade fecunda, mas somente contradição, que é em si a revelação da dificuldade vivenciada pela oscilação entre os precon­ceitos, estigmas e repressão sexual construídos historicamente e apreendidos no decorrer de nossa existência.

Todavia, quando os entrevistados, imbuídos da ousadia, flexibilidade e pluralidade de Eros, desafiam as interdições e se permitem atender aos an­seios de satisfação, se lançam a relacionamentos sexuais com pessoas cegas, ultrapassando, desse modo, os preconceitos e estigmas enraizados em nós desde tenra idade. Porém, as pressões advindas do mundo público, que envolvem as relações vividas no trabalho e as relações com amigos, conjuntamente com as inter-relações familiares – demarca­das em geral pela ressonância de preconceitos e estigmas mantidos pela repressão sexual – arranca-os da possibilidade de estabelecerem laços de comprometimento com os incapacitados sensorialmente.

A justificativa expressa pela pessoa identi­ficada pelo número 5 desvela compreensão em relação às dificuldades que o companheiro cego vivencia: “ele ficou inseguro, pensa que vou falar das dificuldades dele ser cego”, isto porque o cotidiano familiar é construído por modos de ser demarcados pela tolerância e aceitação do parceiro. Por outro lado, esse depoimento desvela ainda que a entrevistada 5 não conquistou sua autonomia de poder: ela mesma decidir que atitude tomar. Aceitou a opinião do parceiro e silenciou. Esse modo de ser coloca em evidência que o diálogo não se instaurou entre este casal. Assim, a ausência de reciprocidade e de cumplicidade acentua que essa relação esteja sendo alicerçarda num modo de ser identificado pela cotegoria Eu-Isso.

Retomando o propósito desse estudo, que é o de ampliar a compreensão da sexualidade de cegos(as), passo a apresentar os relatos das cinco pessoas dotadas de visão.

A voz de cinco entrevistados

Iniciamos esta parte da pesquisa com o agendamento do horário, local escolhido pelos entrevistados e da permissão para gravar o depoimento. A técnica da entrevista foi utilizada por acreditarmos ser ela favorável ao registro de significados de vivências afetivo-sexuais vividas pelas pessoas dotadas de visão que se permitiram relacionar sexualmente com pessoas portadoras de incapacidade visual. A questão que norteou as entrevistas foi a seguinte: “Fale de um modo espontâneo acerca do que é, ou foi, ou está sendo mais significativo para você em seus envolvimentos afetivos e sexuais com pessoas cegas”. Os cinco entrevistados foram informados de que poderiam utilizar o tempo que achassem necessário para descreverem suas vivências e que, quando tivessem alguma dúvida acerca da questão norteadora, a pesquisadora esclareceria.

As descrições dos entrevistados identificados pelas letras A, B, C, D, por evidenciarem pontos convergentes, são analisados conjuntamente. A descrição da entrevistada E, por ser um relato que diverge destes outros, será analisada levando-se em consideração as peculiaridades do relato.

Essa informação faz-se pertinente porque, após a análise compreensiva das descrições, a qual se efetuou pela leitura e releitura atenta e rigorosa das mesmas, com o objetivo de perceber, captar, perscrutar os significados que os entrevistados atribuíram e/ou atribuem às suas vivências afetivo-sexuais com cegos, permitida pela redução fenomenológica, foi possível destacar as seguintes unidades de significados: Ocultamento e Superficialidade das relações, o que vai registrado a seguir.

 

Offline Aislin

 

O ocultamento do relacionamento


“Foi um relacionamento curto, gostei muito, mas foi escondido. Eu não tive coragem de ficar com ele, sabe, namorar e apresentá-lo a amigos e familiares. Foi um bom amante." Entrevistada A, solteira, 34 anos, enfermeira.


Superficialidade das relações


“Eu tive um caso com minha prima que é cega. Fomos criados juntos e um dia nem sei como, aconteceu, mas isso ficou entre nós. É só isso que tenho para dizer.” Entrevistado B, solteiro, grau de escolaridade: ensino médio.

“Nem sei como, mas fazia massagem com ele. E aí foi pintando um clima e aconteceu. Confesso que gostei, mas ficou só nisso.” Entrevistada C, solteira, 22 anos, estudante universitária.

“Tudo iniciou numa festa na casa de amigos. Fui apresentado a ele. Gostei dele de início e gosto até hoje, mas não agüentei a pressão de meus pais, que, mesmo sabendo que a cegueira dele era adquirida, meus pais afirmavam que nossos filhos seriam cegos... Não agüentei a pressão e terminei. Mas sinto falta dele até hoje. Ele era carinhoso, inteligente. A gente se dava super bem sexualmente... (risos). Ele não tinha pressa, ele ficava bastante tempo me massageando. Ah! Sinto falta disso. Agora tô namorando um outro cara, ele é como a gente (enxerga), mas ele não sabe me tocar ...(risos) sei lá, é triste porque fui fraca e não agüentei meus pais.” Entrevistada D, solteira, 25 anos, estudante universitária.


Em direção à compreensão: análise dos relatos


A convergência nestes relatos lançam-nos ao desvelamento das incoerências e contradições criadas e mantidas pela própria sociedade. Ressalvando as exceções, os relatos desvelam o preconceito e o estigma que permeiam os relacionamentos amorosos de dotados de visão com as pessoas cegas. Em geral, os familiares descartam de seus ideais a possibilidade de um filho(a) dito “normal” vir a se envolver sexualmente com um deficiente. Porém, a força de Eros, o deus do amor, com sua ousadia, desafia os costumes pré-estabelecidos, oblitera os ideais estéticos inculcados pelos familiares, e assim, imbuídos dessa força, os dotados de visão se permitiram relacionar sexualmente com os deficientes visuais.

Eros, todavia, sucumbe ao estigma que fora criado pelas normas e regras sociais que remontam aos tempos idos da Grécia Antiga, quando se criou o termo estigma referente a sinais corporais que desvelavam o “status” moral, associado a deformações de caráter de pessoas que os apresentavam. O portador podia ser um escravo, um criminoso ou um traidor, e era marcado fisicamente em seu corpo, por exemplo, com a retirada de uma orelha, de um dedo. Goffman (1988) diz que o estigma refere -se a um atributo depreciativo, isto porque numa relação social cotidiana, o traço, a “marca física”, desperta a atenção para um único atributo, aquilo que falta. Esse modo de ser desloca a possibilidade de a pessoa ser aceita por seus outros atributos. Isto ocorre porque os seres humanos criam expectativas e exigências ao estabelecerem relações, especialmente as amorosas.

Nesse sentido, a sociedade elabora uma teoria do estigma, que se funda numa ideologia do déficit, ideologia essa geralmente utilizada para excluir pessoas que, por não atenderem às expectativas dos ideais de normalidade e de estética elaboradas pela sociedade, são afastadas dos ambientes públicos. Essa postura é explicada pela relação depreciativa que se estabelece entre o sinal corporal com o “status” moral que a pessoa ocupa na sociedade. Desse modo, uma pessoa que poderia ser facilmente aceita numa relação social possui um traço que centraliza a atenção, podendo afastar, assim, possibilidades de sua aceitação plena. No caso da cegueira, tida neste estudo como imperfeição original, não raro os dotados de visão inferem-lhe outras imperfeições, como, por exemplo, a surdez, isto é generalizado para outras capacidades do indivíduo, como se este não fosse capaz de demonstrá-las.

Neste momento, faz-se pertinente esclarecer o leitor acerca destes dois termos geralmente utilizados com o mesmo significado, quais sejam: deficiência e incapacidade. Segundo Scholl (1967), a incapacidade envolve uma condição física ou mental passível de descrição em termos médicos, ao passo que uma deficiência resulta de obstáculos que a incapacidade coloca entre a pessoa que a possui, seu meio e seu potencial máximo de realização de atividades. Desse modo, pode-se entender que nem toda incapacidade vem acompanhada de uma deficiência. O modo como o meio social e cultural mais amplo se organiza e lida com as diferenças é que terá influência na vivência de uma incapacidade. Assim, o fato de o deficiente visual não possuir a visão é algo dificultador por viver em uma sociedade que prioriza o sentido da visão. No entanto, embora possa ser limitada sua visão, os outros sentidos não o são e, mesmo assim, o preconceito existe.

Isso ocorre porque o estigma impinge uma rela­ção de discriminação, a qual dificulta que a pessoa seja aceita em seu todo. Os padrões que os estigma­tizados incorporam da sociedade fazem com que eles in­ter­nalizem a depreciação, isto é, o defeito que os ou­tros vêem nele. Essa postura possibilita o desen­ca­deamento da depreciação de sua auto-imagem.

Segundo Buber, esse modo de ser inviabiliza uma relação marcada pelo envolvimento e comprometimento, o qual se revela em atos e ações de cuidado e de solicitude, o que envolveria acolhimento dos vários aspectos da personalidade da pessoa.

Nessa perspectiva, os relatos: “...Nem sei como, aconteceu”; ... “não tive coragem de ficar com ele; sabe, namorar e apresentá-lo a amigos e familiares.” “...Foi um bom amante” são desveladores da presença do estigma, que com sua força destruidora, consegue afastar, depreciar, separar. Esse modo de ser caracteriza-se pela impessoalidade e distanciamento, próprio da categoria Eu-Isso.

Outro aspecto importante nesses discursos é a banalização do sexo. Nos dizeres de May (1973, p.71), “nós nos atiramos à sensação sexual, a fim de evitar a paixão erótica” a qual, quando vivenciada, poderia lançar o indivíduo a ultrapassar os limites dos valores estéticos dos preconceitos e vir a instigá-lo a estabelecer relações significativas, fugindo, assim, daquelas tidas como “normais”.

A análise desses relatos permite-nos expressar que nessas vivências afetivo-sexuais, houve o predomínio da impessoalidade e do distan­ciamento, modos de ser identificados pela premissa EU-ISSO.

Como já foi dito anteriormente, a descrição da entrevistada E, por divergir dos demais, será analisada com base nas seguintes unidades de significados: “O encontro amoroso”, “O diálogo autêntico”, “O relacionamento com o cego”, “A aceitação da família”, “A admiração pelo companheiro”, as quais, por serem desveladoras de envolvimento e comprometimento pessoal, explicitam o quanto as relações EU-TU são providas de cuidado, zelo, admiração e essencialmente de compreensão e respeito. Visando uma visão global do leitor, as quatro unidades serão apresentadas e, em seguida, será feita a análise.


O encontro amoroso


“Foi uma coisa bonita, porque desde o início foi um relacionamento muito tranqüilo. Eu nunca imaginei namorar uma pessoa deficiente visual. Foi o primeiro contato que eu tive com uma pessoa deficiente. Eu acredito que a família que convive mais de perto com pessoas deficientes tenha mais facilidade para aceitá-las. No meu caso, eu não tenho ninguém na família. Via deficientes na rua; independente de ser visual, motor ou mental e me relacionava com eles como a maioria das pessoas, isto é, vendo-os passeando ou passando pela rua. Agora, com ele (o esposo) foi diferente. Desde o início, nossa relação foi tranqüila. Não que não temos conflitos, mas são iguais a de todos os relacionamentos. Acho que é uma questão do contato com a pele, com os seus ideais e valores que se casaram com os meus.” Entrevistada E, casada, 28 anos, enfermeira.


O diálogo autêntico


“... O primeiro ponto é assim, uma coisa que a gente sempre fez é conversar muito sobre a questão da pena. Acho que muitas pessoas ficam com um deficiente por pena, né? Sinto que nosso relacionamento não teria dado certo se eu tivesse um mínimo de dó, de pena dele, por ser deficiente. Então, isso é uma coisa que eu posso falar com a maior tranqüilidade. Eu não tenho dó, e nem pena dele por ser cego. Não tenho. Pra mim, ele não é o coitadinho, o pobrezinho, ou eu vou fazer isso, ou aquilo porque ele não dá conta de fazer. A gente até brinca dessas coisas que marido em geral gosta que a mulher faz, por exemplo, buscar alguma coisa, ou deixar tudo no lugar. Outra coisa comum é quando deixo-o em algum lugar. Eu não fico escondida olhando pra ver se ele vai dar conta de atravessar a rua ou de subir no ônibus. Eu não tenho esse tipo de preocupação. Porque eu sei que ele consegue resolver os seus problemas.”


O relacionamento com o cego


“Pra se relacionar com um deficiente, a pessoa tem que se conhecer bem. E tem que ver exatamente o que busca realizar com ele. Porque, por exemplo, se for uma mulher que espera que o marido a trate como uma dondoca, ou que dirija o carro para ela ou que pregue coisas nas paredes, aí acho que o relacionamento ‘tá’ fadado ao fracasso. Essas tarefas o deficiente visual não pode executar.”


A aceitação da família


“A minha família, apesar de nunca ter convivido com nenhum deficiente, sua aceitação foi surpreendente, foi muito tranqüila. Isso é muito legal. Eu acho que a minha família sempre me deu muita autonomia, sempre confiou muito em mim. Sempre respeitou muito as minhas opiniões e as minhas escolhas. E eu acho que, mais uma vez, eles concordaram com a minha escolha. Eles acham que não tem problema nenhum o fato de ele ser deficiente. Aceitaram-no, como aceitam o outro genro, que não é deficiente. Não sei se é uma coisa da minha família, de sempre ter tido muito respeito pelo ser humano independente de como ele é. Talvez isso tenha favorecido o desenrolar do nosso relacionamento. Minha família sempre procurou passar uma visão de respeito, de igualdade e de que o preconceito não leva a nada. Não que eu não os tivesse, porque todos nós temos preconceitos. Agora, essa postura da minha família foi uma coisa que ele mesmo ficou admirado por ter sido tão tranqüila a sua aceitação.”
 

Offline Aislin

 
.”


A admiração pelo companheiro


“Admiro-o pela percepção que tem da vida, pelo sentimento, pela inteligência, e acho que pela bondade. Ele é uma pessoa que tem um grande amor e respeito pela humanidade. É uma pessoa que vê que a vida tem algo mais. Acho que a cegueira não limitou o interior dele, não achatou, vamos dizer assim, o espaço dele. Acho que contribuiu para ele expandir seus sentimentos, sua emoção, seu amor pelas pessoas. Entre os deficientes, acho que ele é como um líder. Todos têm necessidade de ficar junto dele, todo mundo quer conselho dele. Porque ele transmite isso, ele passa esse amor, essa coisa além, né?

A perda de visão delimita muito o espaço físico, mas não limita outras formas de percepção, e isso ele possui.”

O relato dessa entrevistada explicita que, quando Eros não encontra sua trilha contagiada por preconceitos e estigmas, sua instalação pode ocorrer de modo a vir a possibilitar o desenrolar de um relacionamento amoroso, que se expressa pela ausência de medo, insegurança de se envolver afetivamente por um deficiente. Mostra que a sensibilidade, a flexibilidade e a autenticidade são ingredientes indispensáveis à construção de uma relação que se projeta a correr o risco de vir a ser um verdadeiro encontro. E, como tal, a continuidade é revisitada pela intimidade. Da perspectiva buberiana, o diálogo pertence à categoria de fenômenos específicos do entre, isto é, da relação. Desse modo, o humano mostra-se no encontro com o outro, no momento em que se permitirá compreender o outro em sua singularidade, como nos dizeres de Buber (1979, p. 17), “o amor se realiza entre o Eu e o Tu”; assim, o sentido e o significado que cada humano atribui a uma relação amorosa, vista com base na perspectiva buberiana, “o sentido não se encontra nem em um dos parceiros, nem nos dois em conjunto, mas encontra-se somente neste encarnado jogo entre os dois, neste seu Entre” (Buber, 1982, p. 139).

Quando a entrevistada expressa que não percebe o seu parceiro “como um coitadinho”, se desvela imbuída de uma percepção global e isto significa dizer que este modo de ser não dicotomiza, não fragmenta, não exclui. Percebê-lo como um todo significa assumi-lo em sua deficiência também, e não a partir dela. Essa postura de solicitude lhe possibilita vê-lo como capaz de “resolver seus problemas”. Nos dizeres de Menezes Junior (1987, p.24), “a solicitude deve reconhecer o outro naquilo que ele é”, isto é, em sua totalidade e especificidade.

Outro aspecto que merece atenção diz respeito a que suas expectativas em relação à convivência com o cego, como por exemplo, no tocante “aos pequenos reparos caseiros”, tarefas tidas como masculinas e/ou a habilitação para conduzir um carro, não serviram de obstáculos para elegê-lo como companheiro. Seu relato desvela que o admira por ser inteligente, bondoso e por “perceber que a vida tem algo a mais”. Algo a mais que é expresso em apreço pelas outras pessoas, como também por não ter se centrado em sua deficiência isto é, por não ter inter­nalizado o papel de “coitadinho”, atitude comumente encontrada no comportamento de deficientes, demonstrando, assim, que não possui uma auto-imagem depreciativa. Como nos dizeres de May (1973, p.163), “é necessária auto-afirmação, uma capacidade para permanecer sobre os próprios pés, uma assertiva do próprio ‘self’ para colocar-se em tal relacionamento”, o que significa dizer que a entrevistada encontrou ressonância, empatia em seu parceiro podendo, desse modo, exercitar a capacidade de partilhar do prazer do encontro que ocorre quando o EU e o TU se permitem vivenciar o estado de reciprocidade e mutualidade, como expressa Buber (1982): “se a mutualidade é conseguida, o inter-humano desabrocha na conversação genuína”, ou seja, o diálogo autêntico se instaura tendo em vista a compreensão mútua.

O falar-ao-outro manifesta-se quando a pessoa se abre à escuta, ao ouvir o seu interlocutor de tal modo a lhe possibilitar o desvelamento. Quando esse modo de ser acontece, o encontro genuíno se instala. Outra especificidade desse momento é que há, entre os parceiros, uma abertura, uma disposição a compreender o outro em sua totalidade, o que não significa ausência de conflitos e de crises, e não há também a superproteção que infantiliza a vida a dois. Esse depoimento desvela a peculiaridade que há quando os parceiros conseguem saber identificar o sentido e os significados que atribuem à vida a dois.

A entrevistada sinaliza em seu discurso que os atributos “contato com a pele, ideais, e valores morais do seu parceiro” foram ao encontro dos seus, revelando, portanto, que não priorizou os aspectos estéticos, aos quais, em geral, os dotados de visão atribuem grande valor já às primeiras impressões em suas escolhas afetivo-sexuais. Como já foi visto, essa relação é permeada pelo diálogo autêntico, como, por exemplo, quando a entrevistada expressa: “...uma coisa que a gente faz é conversar muito, sobre a questão da pena. Eu não tenho dó dele por ser cego. Não tenho. Para mim, ele não é um coitadinho, um pobrezinho”.

Outro aspecto que contribuiu para a entrevistada E eleger um deficiente visual para parceiro foi a postura de sua família, a qual se desvela desprovida de preconceitos e imbuída de respeito para com a escolha que realizou.


Horizontes


“O corpo noutro corpo entrelaçado, fundido, dissolvido, volta à origem Dos seres, que Platão viu completados: É um perfeito em dois, são dois em um”

Carlos Drummond de Andrade

Neste momento, retoma-se a trajetória desse estudo, desde as justificativas das cinco pessoas contactadas e que não participaram da pesquisa, às outras cinco que expuseram o significado que atribuíram à experiência de relacionarem-se sexualmente com pessoas não-dotadas de visão. Neste segundo grupo, o depoimento da entrevistada E se destacou pelas informações acerca da vivência amorosa com um deficiente visual.

Foi possível apreender vários aspectos significativos nesta trajetória, desde o silêncio – expresso pela recusa de cinco dotados de visão para não revelarem facetas de suas experiências sexuais – ao ocultamento e superficialidade daqueles que expuseram sua vivências sexuais com pessoas cegas. As convergências entre os depoimentos apontam para a construção e a manutenção de preconceitos e estigmas, bem como da repressão sexual que contribui para manter o distanciamento entre dotados de visão e as pessoas cegas. Interessante destacar é que a integração do deficiente visual caminha em passos lentos. Desse modo, a dificuldade de expor publicamente o relacionamento amoroso está ancorado à ausência efetiva de uma política de integração do deficiente. Política esta que deveria possibilitar reflexões críticas em relação aos conceitos de normalidade e idealidade, como também a inclusão do deficiente no mercado de trabalho.

Uma vez que nossas escolhas amorosas, em geral, ocorrem entre pessoas pertencentes à mesma classe social, o processo de construção e desconstrução de valores, normas, estilo estético, deveria atingir o núcleo familiar, o qual concentra as primeiras idéias em relação ao projeto de vida da prole.

No que tange às relações amorosas, mormente entre portadores de deficiência visual e dotados de visão normal, estas acabam tornando-se, muitas vezes, superficiais em razão dos preconceitos, do estigma que os de visão normal incorporam, de seus familiares e do meio social. Os depoimentos revelam que a influência dos familiares se faz presente, seja na aceitação, como expressa a entrevistada E, como nos demais entrevistados que expuseram a não-aceitação do relacionamento dos filhos dotados de visão com um(a) cego(a).

Todavia, a vivência afetivo-sexual desprovida de preconceito e de estigma pode ocorrer de modo a possibilitar um descobrir-se, um desvelar-se de sutilezas de um eu diferente e um tu diferente que se voltam a ser um nós, sem, no entanto, se perder na especificidade e individualidade de cada ser humano. A entrevistada E explicita em seu depoimento sua emancipação em relação aos estigmas, preconceitos, normas e valores estéticos que, de modo geral, norteiam nossas decisões. Ao se despir desses valores, permitiu-se vivenciar sua escolha afetivo-sexual com um cego que, segundo percepções da entrevistada, se encontrava emancipado também das introjeções de valores depreciativos acerca da própria incapacidade visual. Desse modo, permitiu-se alcançar a reciprocidade afetiva e sexual simultânea e cindir na paradoxal unidade da dualidade que Eros abarca quando de sua acepção integrativa. No entanto, sem se perder em expectativas inatingíveis, que às vezes tanto prejudicam o nosso projeto de realização pessoal. Por outro lado, o acesso percorrido pelas várias paragens em direção ao acesso aos entrevistados neste estudo possibilitou-nos compreender que a relação EU-TU se expressa num modo de ser cujo significado e sentido vai-se construindo tendo em vista a emancipação de preconceitos, tabus e valores estéticos.

É preciso dizer que há dificuldade de se lançar a um relacionamento no qual a praxis de vida a dois se volte ao encontro genuíno; ou seja, a uma preparação para a compreensão do outro em sua totalidade não se centra somente no relacionamento de pessoas dotadas de visão com pessoas cegas. Os relacionamentos são construídos e expressam que a sociedade, neste momento de seu processo dialético e contraditório, tem priorizado a imediatez, a rapidez e a superficialidade. Assim, os relacionamentos afetivo-sexuais são “contaminados” por tal efemeridade. A preferência sinaliza que as incansáveis “escolhas” de parceiros(as), bem como a preferência dos meios de comunicação ainda recaem sobre a veiculação do culto a padrões de beleza em que o gosto pelas novidades se torna um princípio constante e passageiro, tal como o frívolo domínio da moda.

O anseio de se lançar a um relacionamento com vistas a “ajustes” de expectativas possíveis de serem concretizadas em uma vida amorosa significativa, prazerosa e autêntica – possibilidades que parecem estar fora de uso entre os humanos, sejam eles dotados de visão, sejam cegos – evidencia que, neste universo, todos somos tragados pela embriaguez do prazer descartável, pelas fantasias veiculadas pela substituição por um novo desejo.

Assim, o discurso da entrevistada E desvela-nos que é possível ultrapassar não só preconceitos e tabus como também driblar o modelo que os meios de comunicação e a so­ciedade, de um modo geral, nos apresentam.

Maria Alves de Toledo Bruns - Doutora em Psicologia Educacional, Especialista em Sexualidade Humana, docente do curso de pós-graduação em Psicologia do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo. Coordenadora do Departamento de Educação Continuada em Sexualidade Humana do Centro Latino-Americano de Desenvolvimento.
 

Offline Warayurt

  • Utilizador
  • *
  • Mensagens: 2
  • Sexo: Masculino
  • Tem deficiência: Sim
 
É uma história que não consigo tocar.
 

 



Anuncie Connosco Anuncie Connosco Anuncie Connosco Anuncie Connosco Anuncie Connosco


  •   Política de Privacidade   •   Regras   •   Fale Connosco   •  
     
Voltar ao topo