Perspectiva do diálogo buberiano
Segundo Buber (1979), a pessoa humana desenvolve, ao longo de sua existência, duas maneiras básicas de relacionar-se (EU-TU e EU-ISSO), sendo a relação EU-TU a que expressa a manifestação mais intensa e sintonizada de ser-no-mundo.
“A relação com o TU é imediata. Entre o EU e o TU, não se interpõe nenhum jogo de conceitos, nenhum esquema, nenhuma fantasia, e a própria memória se transforma no momento em que passa dos detalhes à totalidade. Entre o EU e o TU, não há fim algum, nenhuma avidez ou antecipação, e a própria aspiração se transforma no momento em que passa do sonho à realidade. Todo meio é obstáculo. Somente na medida em que todos os meios são abolidos, acontece o encontro.”
(Buber, 1979, p. 13)
Na premissa EU-TU, a pessoa se envolve, se integra; no EU-ISSO, há o distanciamento, a impessoalidade, o descompromisso. Para Buber, o humano realiza-se como gente somente no relacionamento com o TU. Na relação EU-ISSO, o relacionamento ocorre entre sujeito-objeto, sendo apenas uma atitude seccional, departamental, utilitária.
Valendo-me dessa elucidação, a relação amorosa acontece no encontro entre o EU e o TU na qual a pessoa humana se liberta de preconceitos, estigmas de belo e feio, normal e anormal, tão comuns ao nosso cotidiano. Essa vivência revela-se intensa e completa.
Nos dizeres de Bruns & Almeida (1994, p. 75), “essa viagem de descoberta é vivida a dois, pois, ao permitir o desvelar da pessoa amada, desvelo-me também a ela. Nessa fusão se completam e, por instantes, experienciam a eternidade. Instantes que não são olvidados jamais”.
Valendo-me dessa perspectiva teórica elucidada por Buber, proponho-me a investigar o relacionamento afetivo-sexual de pessoas videntes com as pessoas portadoras de deficiência visual.
Em direção ao processo de análise da redução fenomenológica
A fenomenologia é entendida como um pensar filosófico, voltado para a compreensão e a interpretação dada pela consciência aos fenômenos. Fenômeno é tudo o que se mostra, o que se manifesta, o que surge para uma consciência que lhe atribui significado. Assim, a consciência humana em sua existência concreta é finita, temporal e histórica. O processo de análise da redução fenomenológica husserliana possibilita-me caminhar em direção à compreensão da estrutura dos relacionamentos afetivo-sexuais de pessoas dotadas de visão com as pessoas cegas.
Assim, é “sendo no mundo” com outros homens e outros seres que o homem se projeta, orienta-se, enfim, constrói sua identidade; existir é estar na dança desse movimento. Ser consciente dessa dialética é uma das possibilidades de ser no mundo. É com base nessa vivência e na consciência de sua finitude que o homem atribui sentido e significação à sua existência e ao seu momento histórico.
Dessa perspectiva, a fenomenologia possibilita ao pesquisador acesso à consciência desses modos de ser no mundo, uma vez que os acontecimentos culturais, sociais ou ecológicos não existem em “si mesmos”, como se fossem realidades objetivas, neutras, mas, sim, para uma consciência, para um ser que lhe atribui significados, os quais envolvem a percepção que a pessoa possui de si mesma, de sua relação com os outros e com o mundo num determinado momento histórico.
Para Husserl, o pesquisador, ao realizar a redução fenomenológica, assume uma postura de distanciamento do fenômeno que está sendo indagado, isto é, coloca-o em suspensão. Nos dizeres de Forghieri (1993, p. 15):“A redução não é uma abstração relativamente ao mundo e ao sujeito, mas uma mudança de atitude – da natural para a fenomenológica – que nos permite visualizá-los como fenômeno, ou como constituintes de uma totalidade, no seio da qual o mundo e o sujeito revelam-se, reciprocamente, como significações”.
Assim, a consciência humana, em sua existência concreta, é finita, temporal e histórica, e dirige-se intencionalmente para o mundo numa relação dialética. A redução fenomenológica possibilita ao pesquisador o acesso a essa consciência, o que significa chegar à realidade desprovido de estereótipos, estigmas, ou seja, abandonar os preconceitos e pressupostos em relação ao fenômeno interrogado.
Valendo-me desses esclarecimentos, escolhi a trajetória fenomenológica proposta por Martins & Bicudo (1989) e Martins (1992) – a qual consiste nos seguintes passos: Descrição, Redução, Compreensão-interpretação para orientar esta pesquisa, porque seus pressupostos epis-temológicos respondem à minha visão de mundo neste momento histórico, e também por possibilitar-me o desvelamento do fenômeno. A relação afetivo-sexual de pessoas dotadas de visão normal com pessoas cegas e de ter acesso à vivência original dessa experiência e aos significados atribuídos a esta relação.
A seguir, esclareço no que constituem estes passos:
Descrição ou relato: constitui um dado de importância significativa no desenvolvimento da pesquisa fenomenológica não comportando um estilo literário, normas, regras, listas de palavras ou sentenças que devam ser usadas, isto é, consiste em relatos espontâneos dos entrevistados acerca de suas experiências. As descrições pertinentes são analisadas pelo pesquisador num estado e/ou postura de redução fenomenológica.
Redução fenomenológica: consiste num estado de alerta, de suspensão de crenças e de preconceitos em face do fenômeno interrogado, o que não supõe uma atitude de neutralidade. Este momento constitui o que Husserl chamou de epoché que significa uma saída da maneira comum de olhar o fenômeno, ou seja, é uma postura que visa a abandonar os preconceitos e crenças em relação ao fenômeno que está sendo interrogado. O objetivo desse momento da pesquisa é colocar em evidência as unidades de significado, ou seja, reconhecer os momentos dos discursos considerados significativos.
Compreensão fenomenológica: após a identificação das unidades de significado, buscam-se as convergências e/ou divergências entre elas. A compreensão, que envolve sempre uma interpretação, delineia, nesta pesquisa, o modo como pessoas dotadas de visão normal vivenciam seus relacionamentos afetivo-sexuais com pessoas cegas.
Percurso em direção aos entrevistados
Contactei 13 pessoas videntes, sendo 10 mulheres e 3 homens, com idade entre 20 a 38 anos, com grau de escolaridade do 1º grau completo ao nível universitário. O propósito foi abarcar a maior faixa etária possível visando a possibilitar as evidências de vivências em diferentes momentos, bem como influências culturais, educacionais, políticas e sociais de cada momento da vida dos participantes. A escolaridade mínima – ensino fundamental – foi também adotada como critério, tendo-se em vista que esses participantes pertencem ao nível sócio-econômico de média renda, e por considerar ser essa a classe cujos valores, preconceitos e crenças são mais cristalizados. Desse total, apenas 5, sendo 1 homem e 4 mulheres, aceitaram participar deste estudo; os demais assim se expressaram: 3 mulheres e 2 homens justificaram sua não-participação e 3 negaram-se a participar da pesquisa.
Todos os contatados foram informados do objetivo da pesquisa, bem como da preservação de suas identidades, ato comum no trabalho científico. Nesse momento, foi ressaltada a importância social e política do estudo.
No primeiro contato, agendávamos dia e hora para realizarmos as entrevistas. O cumprimento dessa etapa por parte dos entrevistados foi realmente difícil, mesmo sendo eles localizados por meio de amigos e/ou conhecidos. Uma semana antes da entrevista agendada, eram contatados, via telefone, para reconfirmação da hora combinada. Aqui iniciavam-se as seguintes justificativas:
1. “Eu não posso: surgiu outro compromisso”. Sexo masculino, solteiro, 26 anos, grau de escolaridade: ensino médio.
2. “Resolvi não participar”. Sexo feminino, solteira, 23 anos, grau de escolaridade: ensino médio.
3. “Ah! Eu mudei de idéia e não quero falar disso... Isso já foi”. Sexo masculino, solteiro, 31 anos, grau de escolaridade: ensino médio.
4. “... eu pensei e não quero falar mais daquele tempo”. Sexo feminino, solteira, 38 anos, grau de escolaridade: ensino fundamental.
5. “Ele ficou aborrecido... pensa que vou falar das dificuldades dele ser cego... ele ficou inseguro, é difícil para mim, não quero desentendimento entre nós”. Sexo feminino, casada com um deficiente visual completo, 39 anos, grau de escolaridade: universitário.
Registrei tais justificativas por pensar que elas ampliariam, com certeza, os horizontes de compreensão do fenômeno que está sendo interrogado. Especialmente se considerarmos que o silêncio desvela também o nosso modo de ser no mundo, como também as lacônicas expressões verbalizadas. Dessa perspectiva, senti que esse modo de ser no mundo poderia oferecer pistas para compreender mais uma das infinitas facetas da sexualidade humana.
A recusa para não desvelar facetas dessas vivências sexuais lança-nos à seguinte indagação: o que oculta ao não querer “falar daquele tempo”? ou não querer “falar mais disso”. Segundo Buber (1979, p. 82), ”o homem se desvela ali onde não há lugar para revelação”. Nesse sentido, na pessoa, instaura-se um confronto consigo mesma que não pode ser relação, presença, reciprocidade fecunda, mas somente contradição, que é em si a revelação da dificuldade vivenciada pela oscilação entre os preconceitos, estigmas e repressão sexual construídos historicamente e apreendidos no decorrer de nossa existência.
Todavia, quando os entrevistados, imbuídos da ousadia, flexibilidade e pluralidade de Eros, desafiam as interdições e se permitem atender aos anseios de satisfação, se lançam a relacionamentos sexuais com pessoas cegas, ultrapassando, desse modo, os preconceitos e estigmas enraizados em nós desde tenra idade. Porém, as pressões advindas do mundo público, que envolvem as relações vividas no trabalho e as relações com amigos, conjuntamente com as inter-relações familiares – demarcadas em geral pela ressonância de preconceitos e estigmas mantidos pela repressão sexual – arranca-os da possibilidade de estabelecerem laços de comprometimento com os incapacitados sensorialmente.
A justificativa expressa pela pessoa identificada pelo número 5 desvela compreensão em relação às dificuldades que o companheiro cego vivencia: “ele ficou inseguro, pensa que vou falar das dificuldades dele ser cego”, isto porque o cotidiano familiar é construído por modos de ser demarcados pela tolerância e aceitação do parceiro. Por outro lado, esse depoimento desvela ainda que a entrevistada 5 não conquistou sua autonomia de poder: ela mesma decidir que atitude tomar. Aceitou a opinião do parceiro e silenciou. Esse modo de ser coloca em evidência que o diálogo não se instaurou entre este casal. Assim, a ausência de reciprocidade e de cumplicidade acentua que essa relação esteja sendo alicerçarda num modo de ser identificado pela cotegoria Eu-Isso.
Retomando o propósito desse estudo, que é o de ampliar a compreensão da sexualidade de cegos(as), passo a apresentar os relatos das cinco pessoas dotadas de visão.
A voz de cinco entrevistados
Iniciamos esta parte da pesquisa com o agendamento do horário, local escolhido pelos entrevistados e da permissão para gravar o depoimento. A técnica da entrevista foi utilizada por acreditarmos ser ela favorável ao registro de significados de vivências afetivo-sexuais vividas pelas pessoas dotadas de visão que se permitiram relacionar sexualmente com pessoas portadoras de incapacidade visual. A questão que norteou as entrevistas foi a seguinte: “Fale de um modo espontâneo acerca do que é, ou foi, ou está sendo mais significativo para você em seus envolvimentos afetivos e sexuais com pessoas cegas”. Os cinco entrevistados foram informados de que poderiam utilizar o tempo que achassem necessário para descreverem suas vivências e que, quando tivessem alguma dúvida acerca da questão norteadora, a pesquisadora esclareceria.
As descrições dos entrevistados identificados pelas letras A, B, C, D, por evidenciarem pontos convergentes, são analisados conjuntamente. A descrição da entrevistada E, por ser um relato que diverge destes outros, será analisada levando-se em consideração as peculiaridades do relato.
Essa informação faz-se pertinente porque, após a análise compreensiva das descrições, a qual se efetuou pela leitura e releitura atenta e rigorosa das mesmas, com o objetivo de perceber, captar, perscrutar os significados que os entrevistados atribuíram e/ou atribuem às suas vivências afetivo-sexuais com cegos, permitida pela redução fenomenológica, foi possível destacar as seguintes unidades de significados: Ocultamento e Superficialidade das relações, o que vai registrado a seguir.