Grande Entrevista a Marta Pessoa, responsável por Quem Vai à Guerra
Depois de ter passado pelo IndieLisboa'11, estreou no passado dia 16 de Junho nas salas portuguesas o documentário «Quem Vai à Guerra». A realizadora, Marta Pessoa, falou com o c7nema sobre esta obra e contou-nos um pouco mais sobre a experiência gratificante em aprofundar algumas histórias menos conhecidas de Portugal nos tempos da Guerra Colonial, pois houve quem fosse à Guerra, mas houve também que cá ficasse. Este é um trabalho de fundo sobre o papel das mulheres durante a Guerra Colonial.
Aqui ficam as suas palavras.
Como é que surgiu esta ideia?
A ideia foi surgindo ao longo do tempo, não consigo ver um momento. De repente, apercebi-me - há uma palavra que não gosto muito: geração, mas é uma palavra fácil - que não havia ninguém, mais ou menos da minha geração, que, de alguma forma, não tivesse um pai, um tio, um primo, alguém da família que tivesse estado na guerra ou que tem outro tipos de histórias de guerra, como ter fugido para não ir à guerra ou primos ou alguém da família, mais novo, mas já de outra idade, se calhar num escalão mais perto dos 50 anos, que viveu a guerra naquela ansiedade da adolescência a pensar “será que a guerra não vai acabar? eu vou ter de ir?”. Às tantas, fui-me apercebendo, para além dessa experiência constante de ter vivido desta forma, pelo pai, pela família, por Portugal inteiro, vivido com a Guerra Colonial, fui-me apercebendo que, por exemplo, agora com a internet os ex-combatentes voltaram, eles sempre se encontraram, mas voltaram a encontrar-se outra vez muito, a organizarem-se, a procurar...
Há grupos no facebook...
Grupos, nunca mais acaba. Foi uma pesquisa em espiral, quando eu comecei à procura disto: cada blogue ia dar a outro blogue, cada companhia ia dar a outra companhia, facebook, blogues, internet, páginas que nunca mais acabavam e então apercebi-me que não havia uma história de retorno, fiquei com a sensação de que muitas pessoas nunca tinham regressado. Ainda se fala: “a Guerra Colonial ainda anda aí”, acho é que ela nunca se foi embora, estes 37 anos...
A parte final do filme mostra isso.
Foi essa exactamente a minha ideia, fui verificando que não acabou em 74, aquele marco histórico.
Dá ideia que as pessoas não sabiam, não estavam preparadas para perceber o que era voltar e então viam os maridos e os filhos com problemas comportamentais, mas não associavam uma coisa à outra.
Acho que as pessoas não perceberam nada: não perceberam o que era ir para lá, não perceberam o que era voltar, acho que ninguém percebeu nada. Não se falava quando se ia, aliás, isto tudo começou no início dos anos 60: não havia guerra nenhuma, sempre foi uma guerra negada e os problemas começam... nem sei quando é que os problemas começam... *risos* nem sei quando é que começam os problemas porque a Guerra Colonial, a figura da Guerra Colonial, não é uma coisa que começou em 61 e acabou em 74. A, aquelas campanhas, os “gungunhanas”, fomos sempre colonizadores. Isso também me deu mais vontade de fazer o filme: porque é que 37 anos depois do 25 de Abril de 74 (eu nasci em 74 por isso puxo sempre dos galões de 1974), porque é que eu tenho de ouvir repetido o mesmo discurso da Ditadura? Sem questionamento!. O Afeganistão, estas guerras mais recentes, comecei a ver repetida a iconografia: a partida dos soldados, a Pátria, o Dever, isso tudo, “mas estou a ver outra vez aquelas imagens de arquivo, mas desta vez a cores?”. Há aqui alguma coisa que para mim não funciona bem, porque eu nunca aceitei a Guerra. Isto parece um bocado evidente. Podia fazer um filme contra a guerra, é óbvio. Quer dizer, não é assim tão óbvio porque os filmes de guerra nem todos são contra a guerra, muito pelo contrário. Na Segunda Guerra Mundial era tudo propaganda a favor da guerra e os americanos são peritos em fazê-lo, e ultimamente então, têm feito filmes a glorificar a guerra, mascarados de filme de acção. E dizer “mas é óbvio que a guerra é uma coisa horrível”, não é assim tão óbvio e para estes ex-combatentes, estou convencida agora (isto é uma coisa que não posso dizer a ninguém) que é o grande momento da vida deles, eles encaram a guerra um bocado assim. Claro que depois isto lhes traz problemas de permanência, de estarem constantemente...
Há ali um momento de definição pessoal, mas o foco do filme foi nas mulheres, as que ficaram, as que foram, as que estavam lá a ajudar, as que casaram com eles depois...
Exacto, essa era a minha ideia. É evidente que eu tinha esta raiva e este questionamento um bocado furioso: “mas não devemos questionar aquilo que nos oferecem historicamente de bandeja?”. Por isso a minha ideia era fazer um filme não só sobre a guerra, mas sobre um lado invisível da Ditadura. Falar de lados invisíveis da Ditadura remete automaticamente para as mulheres. Claro que, para aquelas mulheres há uma experiência de guerra e as mulheres do início dos anos 60 não são as mesmas mulheres do início dos anos 70, de facto, por todo o discurso que a Ditadura patrocinou de não assumir a guerra, de defender aquilo que era nosso há 500 anos (tanto que uma delas até fala disso) e quando umas das senhoras diz “nós já tínhamos consciência que aquilo era uma guerra injusta”, pode parecer algo estranho, mas estamos a falar de uma mulher que foi para a guerra com o marido já nos anos 70, portanto já é outra experiência, já muitos soldados tinham regressado do sítio onde ela vivia, já muitos tinham morrido e, apesar de o Regime não falar, a partir do momento (e elas próprias falam nisso) em que os primeiros soldados regressam em 1963, passados os dois anos das comissões...
Começa a perceber-se mais
Porque eles contavam. Não aparecia nos jornais, mas eles contavam ou então não regressavam. Em 63 ainda foi mais óbvio, porque houve a chegadas dos contingentes, que uns não regressaram, que outros regressaram com histórias para contar e este desgaste todo - parecia que a guerra nunca mais ia acabar - criava uma consciência nas mulheres, apesar daquela ideia (que também quis mostrar no filme) da submissão, de fazer o que os pais mandavam, de uma delas dizer “o pai dizia que estava mal, a mão dizia que parecia mal” (eu acho isso delicioso) e há uma das enfermeiras que diz que foi mal vista pela família dele [do marido] e mesmo passados 50 anos ainda há isso.
Ainda acham que ela é uma “grande maluca”
E eu acho que elas eram umas grandes malucas *risos* assim de uma forma bastante informal, elas eram umas grandes malucas, e foi curioso porque no primeiro dia de filmagens, que foi exactamente o dia em que estavam lá as enfermeiras todas, eu já as conhecia, claro, já tinha estado com elas em conjunto, mas para a equipa aquilo foi uma grande surpresa, quando viram aquelas senhoras todas com uma energia!
São animadas ainda, passado este tempo todo?
São, têm outra atitude, têm outra visão que tem a ver exactamente com a própria experiência. Por isso, quando construí o filme, tinha essa ideia, queria fazer a aproximação com a frente de batalha. Só que, para mim, a frente de batalha não é tão linear como o discurso que diz que a frente é onde há os combates. Para mim, há as que ficavam e que sabiam muito pouco. Aliás, o filme começa no início da guerra, não se sabia de nada. Havia aquilo da “menina”, da mocidade portuguesa e daquelas missões, das cartas que pouco diziam e isso por várias razões, por causa da censura. Para minha surpresa, achava que a censura era muito cerrada, mas não podia ser porque eles escreviam milhares de cartas e era impossível... O que não era impossível e que havia muito, era a presença da PIDE, que elas também falam nisso. Há uma senhora que me contou que foi a Bissau, não tinha sítio onde ficar e ficou numa casa ao lado de uma casa da PIDE e que ela teve de sair porque aquilo era gritos e torturas. A PIDE claro que estava muito relacionada com o meio militar e na Guerra Colonial foi muito forte. Mas havia essa aproximação e foi assim que também pensei o filme: as que ficaram, e que não sabiam muito, ou as cartas... eu até acho que as cartas dizem bastante.
Fiquei surpreendido por dizerem tanto.
A quem estiver atento, mas também (isso não está no filme, mas como sei a história toda) tem a ver com as maneiras de ser, cada pessoa é diferente. Aquele soldado, que só era Alferes, tinha andado no seminário, tinha outra visão da vida, mas realmente eu achei que ele contava muito. Contava e reflectia muito sobre a guerra. Para depois não me acusarem que fui eu que estava a pôr o discurso: aquilo é uma carta verídica. Não, porque às vezes pode haver manipulação.
Sim, mas para isso há as próprias cartas
Há as próprias cartas e mais do que haver as próprias cartas, pedi que fossem elas, em conjunto, que as escolhessem. Não fui eu que as li e disse “isto é que era mesmo bom para entrar no filme!” e muito desse trabalho foi feito assim: as cartas da madrinha de guerra, tudo o que são cartas foram lidas e foram elas que escolheram.
E as fotografias?
As fotografias também foram escolhidas em conjunto, em conversa. Claro que a maior parte do trabalho foi feito em casa delas, no ambiente delas, com os materiais delas e foi um bocado pensado em conjunto. Não foi só escolher, foi pensar em conjunto o que é que fazia sentido também para elas trazer para o filme.
Como foi feita esta selecção? Como é que foram descobertas estas pessoas que participam? As enfermeiras é óbvio, são as únicas que foram, e as outras?
Há aqui um lado pragmático: isto é um filme, não é um épico, não é a enciclopédia britânica e, dada a realidade da época, são milhares de mulheres. É claro que os filmes não têm 10 horas, não têm 20 horas, têm no máximo duas horas. O que é que eu tinha de encontrar? Tinha de encontrar um “ramalhete” (tem de ser dito assim de uma forma um bocado crua), tinha de ir buscar aquelas que eu achava que eram relevantes neste contexto da estrutura das que foram, das que ficaram.
A estrutura já estava pensada?
Já estava pensada. É a tal história que eu não disse há bocado, que era as que ficavam e que naturalmente sabiam pouco, porque também as informavam pouco, quanto menos soubessem melhor; depois as que foram para lá, essa “esquisitice” de ir para lá e depois as enfermeiras pára-quedistas. Há um bocado aquele preconceito das que foram para lá: “elas foram para lá” - uma pessoa lembra-se sempre de “A Costa dos Murmúrios” - “ e ficaram lá num hotel”. A Lídia Jorge foi uma mulher dessas, mas nem todas foram. No filme está uma que foi para o mato e que sofreu uma emboscada e ia com o filho e com outra criança. Também há essas histórias. Depois as das enfermeiras, com as evacuações e depois o lado que me parece mais de guerra de permanência, porque não estamos a falar de comissões de dois anos, estamos a falar de, como elas dizem no fim: “estive vinte e tal anos, estive vinte e oito, vinte e três sem saber qual era a doença do meu marido” e adorei quando uma delas diz que finalmente descobriu que era “da guerra”. E não são só elas, são os filhos, por isso há aqui outra geração implicada, os filhos viveram naquela situação.
Mas eles não apareceram, foi uma escolha?
Foi uma escolha, porque ao pensar quem eram as personagens do filme, rapidamente me apercebi que eram todos os outros que não são soldados, mas sim, a experiência de uma geração.
Lá está: geração.
A geração... mas fiquei contente comigo própria quando elas começaram a ter esse discurso e logo no início há uma que fala das partidas nos cais, que é uma imagem que marca muito - e ela utiliza mesmo a expressão - “a minha geração”. Mais à frente há uma senhora que diz uma coisa que também tem a ver com a geração, que fala dos jovens que tombaram, dos jovens que já tinham morrido, os jovens que fazem parte da geração dela. Por isso, os filhos, aqui no filme, não entravam. Outras pessoas que não entravam foram os pais. Para já, porque já é difícil encontrar mães de soldados, basta fazer as contas, e depois porque as mães faziam parte de uma iconografia já específica do Estado Novo. As mães sofredoras que, mesmo sofrendo, mandavam os filhos para combater, para defender a Pátria. Deliciosamente, outra narrativa da mãe é a narrativa da resistência. Aliás, esta figura da mãe, como figura elementar, era usada pela Ditadura e pela resistência, o. Os comunistas, o neo-realismo, também têm a figura da mãe que cuida e que é ali o pilar. Ouvi algumas pesquisas, não directamente, mas as mães têm de facto outro discurso que não tem a ver com esta lógica de geração.
Este é um filme muito “teatral”, porque tem um cenário montado e pensado para cada pessoa que aparece. Porquê esse esforço, que é raro num documentário onde as pessoas são filmadas num fundo branco ou preto?
Branco, preto ou a própria casa das pessoas. A minha ideia era completamente diferente. Para já porque, fazendo as contas, estamos a falar de coisas que aconteceram há 50 anos, há muitas histórias, e queria tirar estas mulheres do seu espaço doméstico. Porque o espaço doméstico delas agora é o de 2010/2009 e, então na experiência das que foram para lá é ainda mais evidente, porque não tem nenhuma relação com o Portugal de 2010. Quando contam as suas histórias, são sempre muito domésticas, “a minha casa tinha duas cadeiras, duas isto, duas aquilo, ...”, aliás, o discurso delas começa sempre com algo muito leve da cor da terra, disto, daquilo, de África e rapidamente entrava na G3 que tinham no armário e que estava encostada lá ao lado... não foi a única que me contou, essa é a única que está no filme, mas todas mais ou menos contam essa experiência. Então era preciso esse trabalho e era preciso ir à procura do fantasma, não só delas, mas dos fantasmas dos lugares.
São desenhados conforme as descrições delas?
Na pesquisa falei com elas todas e fui apontando aquilo que elas todas me diziam, por isso também é importante que fosse a minha interpretação. Depois vim para aqui [os escritórios da produtora Real Ficção] e sentei-me com uma pessoa que me deu imenso prazer trabalhar, que é o Rui Francisco, que vem exactamente da cenografia e do teatro, e com a Inês Carvalho, da fotografia, e foi pensado como um espaço de representação. Há esse lado teatral porque eu também me queria afastar um bocado daquele lado mais imediato de identificação de ficar a ouvi-las falar, essa habituação, uma pessoa habitua-se a essas imagens, “ah é o fundo preto, é o fundo branco, é a casa delas”
Elas reagiram?
Algumas reagiram, mas foram todas muito pragmáticas. Aquilo foi engraçado porque estávamos a falar de África, de um grande calor que elas todas referem, e conseguimos ir para um sítio completamente gelado, onde chovia, aconteceu tudo e mais alguma coisa, muito frio, e isso deu ali uma concentração. Se calhar, elas não se aperceberam disso, porque não sentiram esse lado mais etéreo. Mas umas reagiram, especialmente aquelas que tinham os quartinhos construídos lá ao fundo. Uma delas pôs-se encostada à varanda e olhou assim a terra que lá tínhamos posto, e até disse: “isto é igualzinho à minha varanda!” e olhei para ela, sabia que, já tinha visto fotografias, aquilo era o Lago de Niassa, e olhei para ela e ela estava com carinha de quem estava a ver um lago de facto, e isso foi muito emocionante. Ao mesmo tempo, parece que as mulheres têm um lado mais pragmático e não ficaram também espantadas, nem bloqueadas. Houve ali uma identificação, mas ao mesmo tempo uma resolução, elas resolveram: vamos fazer, aceitámos esta proposta e aqui estamos para falar.
Houve alguém que se arrependesse?
Bem, se se arrependeu não me disse nada *risos*
Que tenha participado inicialmente, mas que depois...
Ah, sim, mas isso é outra história. Todas as senhoras que eu filmei estão no filme, mas nem todas com quem falei na fase de pesquisa foram filmadas. Isso, para mim, é um grande sinal vermelho a piscar com grande intensidade: falei com duas ou três mulheres de deficientes físicos, que estavam muito entusiasmadas por participar, porque vivem também vidas muito isoladas com os maridos, mulheres de tetraplégicos, de paraplégicos, que viveram sempre muito isoladas e com grandes dificuldades económicas e sempre em grande conflito com o Estado, com o aparelho militar, que também é um grande problema.
Uma delas aparece lá com as cartas...
Exactamente. Porque é que elas não participaram no filme? Porque os maridos não as deixaram participar. Quer dizer, não mo disseram directamente, mas disseram “sabe, eu tenho dificuldade...”, houve uma determinada altura em que era realmente para filmar (tenho isto tudo gravado, tal e qual) e em casa delas tudo bem, mas depois deixaram de vir ao telefone e eles começaram a cortar. Há aqui outra vez um lado de silenciar e isso não lhes posso perdoar.
Mas isso por terem medo de haver consequências a nível da relação deles com o Estado ou porque essas coisas não se falam?
Não sei. Não se falam. Sei porque tive a experiência, não nesta altura, mas já há uns anos que me contaram (mas isto foi um caso especial e não tinha nada a ver com o filme, o filme ainda nem existia) que de facto houve uma grande agitação dos deficientes após o 25 de Abril, grandes conflitos, grandes manifestações, isto metia os restos da LUAR, aquelas grandes confusões todas do pós-25 de Abril e passado esse período, os deficientes auto-excluíram-se um bocado, foram excluídos e a situação ficou sempre muito confortável porque eles desapareceram.
Nós não temos movimentos como os Estados Unidos têm do Vietname, que ainda agora fazem barulho e nós não temos nada semelhante. Nem a figura do Veterano temos.
Pois não, não temos. E não dá jeito nenhum, porque essa é uma das razões porque estas mulheres vivem assim. Porque é que se compara a Guerra Colonial com a guerra do Vietname? A Guiné era muito parecida com o Vietname, o mesmo tipo de guerra, de guerrilha, na mesma altura, de facto, na Guiné era tudo muito parecido com o Vietname, havia napalm e tudo, apesar de ninguém falar nisso. Só que os soldados casados regressavam com stress de guerra e as mulheres divorciavam-se, seguiam a vida delas, mudavam de rumo. As mulheres de cá, é como uma delas diz no filme, ela separou-se do marido, mas depois a família era uma família cristã e parecia mal e podia ser que ele melhorasse. Mesmo depois do 25 de Abril, as mentalidades não mudaram naquele dia e aquela cultura de submissão ainda continua. Isso foi o que levou as mulheres dos deficientes a dizer “mas eu quero falar, porque já falei e quero ir e arranjo maneira de ficar aqui alguém a cuidar de ti, numa tarde ou numa manhã. Eu vou falar”, porque tentei sempre esclarecer o que é que o filme era, as pessoas que tinham sido escolhidas (não lhes disse exactamente que ia fazer um “ramalhete de senhoras”) porque era essencial. Só pensando, isto agora voltando atrás, nas que foram para lá acompanhar, temos Moçambique, Angola e Guiné, quer dizer, não podiam ser todas de Moçambique, não podiam ser todas de Luanda, não podiam ser todas do mato, não podiam ser todas do início, não podiam ser todas do fim, não podiam ser todas de Lisboa, não podiam ser todas do Litoral, tentei que houvesse aqui um equilíbrio, tentei apanhar um leque maior. Não estão lá todas, não estão as mulheres dos deficientes... Aliás, uma delas é uma mulher de um deficiente, faz parte da Associação dos Deficientes das Forças Armadas e de facto ele tem problemas físicos, só que os problemas psiquiátricos são muito superiores, são piores e isso parece que se sobrepõe. Agora, é verdade que elas têm todas, ainda hoje, processos abertos e a que fala do processo e que fala mais abertamente da história do alcoolismo do marido é porque o marido morreu e ela encerrou ali, já não há processo, por isso ela pode falar abertamente. Nas outras fica um bocado subentendido, há uma que diz que o marido lhe bateu e as outras histórias são semelhantes,... Aas próprias enfermeiras contam que, quando iam ao quartéis, fazer evacuações no meio do mato, na Guiné, chegavam lá cheias de sede e queriam beber um copo de água, uma garrafa de água, não tinham água para lhes oferecer, tinham álcool, tinham cerveja, tinham whisky, e aguardente, tinham muito álcool para oferecer, elas tinham era sede e eles não tinham água para oferecer. Isso fazia parte do campanha para os soldados não perceberem bem o que é que se estava a passar. É por isso que muitos voltaram, chegaram ao cais e já não foram para as aldeias, andam por aí, ainda andam por aí. Isto é outra história escondida, não tem nada a ver com o filme, tem a ver com os soldados, os sem-abrigo, da Guerra Colonial. E essas mães, imagino eu, que ficaram à espera que os filhos viessem, mas nunca chegaram à aldeia, chegaram a Lisboa e... ficaram. Desembarcaram e ficaram.
Não houve uma tentação de mostrar os maridos?
Então não mostrei os maridos? Eles estão lá em todas as fotografias...
Sim, mas mostrá-los agora com elas.
Não. Achei que este era o espaço delas, para elas contarem as histórias. Porque elas calam-se, a partir do momento em que eles querem falar, elas calam-se. Aliás, quando foi a estreia na Culturgest, houve um debate a seguir e elas estavam praticamente todas lá e também estavam lá os maridos e havia ex-combatentes que tinham uma certa curiosidade em ver o filme e só eles é que falaram ao início. Passado uma hora, só homens é que tinham falado. Por acaso, uma delas depois fez esse comentário reflectindo sobre essa ideia: “um filme sobre mulheres e quem falou foram os homens”
Mas não o disse na altura, só fora
Não o disse na altura, claro, não o ia dizer à frente de todos. Há aqui uma estrutura que ainda se mantém, ainda existe e é a tal que levou ao caso extremo das mulheres terem falado comigo ao início, mas depois não estarem no filme. Houve uma até, que só falei por telefone, que me disse mesmo: “não posso falar consigo, porque o meu marido não gosta” e eu aí... apeteceu-me dizer tantas coisas! Não disse, mas apeteceu-me. Mas também não é a minha função andar para aí a dar lições de moral e a julgar as pessoas. Também foi uma coisa que achei que tinha de estar absolutamente fora do filme, esse lado mais didáctico, mais desgraçado, até porque elas próprias não têm essa atitude. Mesmo as que foram para África, elas não começam por contar “ai! aquilo era isto, aquilo era aquilo”, não, começam “ai! África é maravilhoso!”, começam pelo lado maravilhoso. Mas rapidamente chegam lá, “ai, mas eu passava muito tempo sozinha, era um grande isolamento, tinha a g3, tinha uma caixa de granadas debaixo disto, e eles nem atacavam aquela zona, mas houve uma altura em que começaram a atacar, e eu depois até tive de mudar para dentro do arame farpado”, por isso as histórias vêm, mas elas têm imenso pudor em contá-las. Não é porque elas achem que a história não lhes pertence, é delas também. Era essa a minha ideia inicial, estou convencidíssima que esta ideia de que quem vai à guerra são os soldados está completamente errada e os discursos que ouvimos sobre a Guerra Colonial são os discursos do meio militar, os discursos dos ex-combatentes. A guerra na Bósnia é um grande exemplo disso, das mulheres, dos massacres, disso tudo, mas é mais difícil de compreender porque era uma guerra que não era propriamente em Portugal, apesar de eles dizerem que aquilo era Portugal, mas não era propriamente no território, o que permitia haver menos informação, menos proximidade, até as enfermeiras pára-quedistas falam muito disso: quando estavam lá aquilo era guerra, guerra intensa, nem folgas faziam, chegavam cá e parecia que tinham aterrado na Lua, ficavam deprimidas, não tanto quando estavam a trabalhar, apesar de viverem aquilo muito intensamente e muitas terem sequelas psicológicas, por verem aquelas situações todas, mas quando chegavam cá, aí é que elas ficavam abatidas, porque achavam Portugal completamente desinteressado da Guerra e desligado. Só mesmo as famílias que tinham ligações muito dramáticas de morte ou de regresso de soldado, do filho ou do irmão ou do namorado ou do marido estropiado é que sabiam que de facto havia uma guerra, porque as outras estavam...

Nem tinham maneira de se juntar e falar sobre isso.
Alguma vez? Não se podiam juntar! Não podiam. Não faziam e não fazem, as viúvas do início da guerra, onde é que elas estão? Não as encontrei, porque não havia guerra, não convinha andar a mostrar viúvas, tudo heróis, eles eram uns heróis.
Como é que foi feita essa procura?
Muitas conhecia-as pessoalmente, quem é que não conhece? Mas, mais uma vez, acabavam por ser específicas de um grupo. Foi a partir de associações, dos deficientes das forças armadas, da APOIAR que lida com o stress pós-traumático, e depois foi a pedir, fiquei descarada: “não se arranja...?” Não foi bem assim, mas quase, queria uma madrinha de guerra, mas uma madrinha de guerra que não fosse tão institucional, que tivesse um lado mais afectivo, mais informal. A madrinha de guerra que está ali é uma madrinha de guerra que vivia numa aldeia isolada e que ela própria servia, ela diz “a minha zona”, mas a zona é porque realmente era um núcleo de...
Escrevia para mais de vinte, diz ela.
Eram os da zona dela, porque eram os que conhecia, tinha aquele dever, mas não foi a Cecília Supico Pinto que a mandou escrever como missão, ela conhecia aqueles ou se não conhecia era o vizinho do vizinho, era o filho do senhor não-sei-quantos, havia aquela hierarquia da aldeia e tudo começou assim, por achar que, se era importante para eles, ela tinha de o fazer. Essas fui-as conhecendo, fui falando, perguntando. Algumas já nem sei por onde é que começou, uma viúva que fui descobrir em Aveiro. Uma delas, que é uma namorada, descobri por acaso, porque coincidiu com a edição de livro chamado “Morto por te ver”, que são, muito à semelhança das do Lobo Antunes, cartas do soldado à namorada. Liguei para a editora. As outras foi: “conhece? não conhece? mas conhece alguém?” As próprias enfermeiras conheciam algumas pessoas.
Quanto tempo demorou, mais ou menos, esse processo?
Houve duas fases: tive um primeiro apoio para fazer esta pesquisa, que foi provavelmente cinco, seis meses em que falei com as enfermeiras e mais algumas pessoas. Depois, quando o filme foi apoiado, mais uns oito meses para a rodagem. Claro que isso não foi muito intensivo. Às vezes demorava muito tempo a chegar a elas, mas quando chegava era muito fácil. Fui sempre muito bem recebida. Às vezes era complicado chegar às pessoas, ainda bem que achei que os Açores e a Madeira podiam ficar de fora. Foi uma decisão sem lógica nenhuma para além da lógica da produção de que as coisas não são infinitas e temos que delimitar. Depois tenho as senhoras todas trocadas, há uma senhora do Norte, com uma senhora do Sul, depois há uma do Norte que vive no Sul, há uma do Sul que vive no Norte, mas lá consegui. Não foi seguido, mas foram provavelmente dois anos de trabalho. Isto tudo fica a pesar, mas depois também tinha aquela ideia de trabalhar no lado da cenografia.
Também fazia parte da ideia inicial?
Fazia. Havia a questão de como é que ponho agora, depois de 50 anos... Isto tem que ter um lado formal, a imagem também tem isso. Tenho que ir buscar aqui algumas referências, algumas fui buscá-las aos anos 80, que era o período delas e desde o início que fui buscar algumas referências ao cinema e ao teatro também, para me ajudarem na construção. Uma que foi logo muito óbvia para mim, mas muito simples e não aprofundei muito, confesso, porque achei que também não era esse o caminho, foi pensar sempre no Brecht. É sempre uma boa opção, porque é sempre aquele que nos descola um bocado desse lado romântico, porque não me interessava nada que as pessoas estivessem ali a ouvir aquelas histórias e aquilo tudo a ficar ali em algodão doce. Havia esse lado de questionamento, de olhar de uma forma que não fosse romântica, porque sabia que elas naturalmente me iam contar coisas muito românticas, como contaram, de “eu fui para lá porque o amava” e as cartas e aquilo tudo, “à espera do amor”, “ir ter com o amor”, “ir para o fim do mundo”. Por isso havia a necessidade de quebrar ali uma barreira. Depois havia outro tipo de trabalho sobre as imagens institucionais, desde o início sabia que também iriam existir e que eram poucas porque as mulheres não foram alvo de muito interesse durante a Ditadura e não apareciam. O que há mais são as mulheres a receber as medalhas no 10 de Junho e, mesmo assim, são meia dúzia de mulheres. Havia esse lado e as fotografias delas. Aí, fui buscar a grande ajuda de uma referência para mim, que é o Errol Morris, especialmente o “Standard Operating Procedure” e o “Fog of War”, especialmente o “Fog of War” que é mais uma reflexão sobre a guerra e gosto muito de como ele utiliza as imagens de arquivo. Vi logo que as fotografias não podiam ser mostradas como se estivéssemos a ver o álbum, portanto, cada uma tinha de ser um plano. Muitas vezes, acho que se cai um bocado nessa tentação, porque é assim que as vemos, quando se vê um álbum de... mais uma de casamento, mais outra, mais outra, mais outra...
Mas elas não se repetem assim tanto
Não, aqui elas não se repetem assim tanto porque eu vi-as a primeira vez com elas e tentei perceber o que é que elas me estavam a dizer a olhar para aquelas fotografias.
Foram escolhidas também como marcos emocionais?
Marcos emocionais. Há uma fotografia que, talvez a mais emocionante delas todas (fazendo aqui uma coisa que é um bocado grosseira, que não se devia fazer, que é uma estatística ou uma escala, um top) foi uma da senhora que conta que foi para Luanda e que foi com o marido, ele não se apresentou no quartel, foi dado como desertor e a polícia foi buscá-lo. Ela contou-me essa história toda agarrada exactamente àquela fotografia, por isso está naquele momento. É uma fotografia que é a única que ela tem de Luanda, daquela casa, mas que é uma fotografia de um momento visivelmente de felicidade, em que ela está com um bebé e com o filho pequeno, não é uma fotografia ilustrativa, mas ela contou-me muito agarrada a essa fotografia. Assim, como também me contou muito amarrada àquela fotografia em que ela logo a seguir diz: “mas ele bateu-me”, que é uma fotografia em que eles os dois estavam a dançar e que é também uma fotografia que ela me contou que era de um momento em que ela achava que as coisas podiam mudar. Há esse lado, que é desvendado agora, mas claro que não o é no filme. Elas estão lá, mas isto não se sabe. Sou eu que o estou a contar agora. Mas essa escolha não fui só eu que a fiz, porque achei que eram aquelas as que queria, houve esse trabalho também com elas. Quando uma que diz que “estávamos na guerra, mas havia uma certa normalidade” e em que aparece ela a lavar a roupa, foi ela que disse: “quer ver?” e mostrou-me aquela fotografia. É uma fotografia encenada. Ela está ali a lavar a roupa, a olhar para a câmara a rir-se, mas foi aquela que ela me mostrou. Eu achei muita graça porque o tanque diz mesmo “Guiné-Bissau”. Há muitas camadas nas fotografias, também sabia que as tinha que tratar dessa forma. E no início da pesquisa... falta aqui um elemento, perguntei-me “como é que eu agora vou colocar os elementos que tenho?”, então aí apoiei-me como sabia. Fui buscar uma coisa no início dos anos 90, fim dos anos 80, de um realizador que eu gosto muito para me inspirar que é o [Derek] Jarman, “Wittgenstein” e o “Caravaggio” também, que tem as duas épocas, também não queria propriamente estar ali a pôr objectos, objectos de épocas, porque elas também falavam e muitas delas ainda têm em casa e ainda utilizam coisas da altura, como o robô de cozinha que tinham na Guiné e que ainda utilizam. Há coisas mais óbvias, como a estatueta africana que ainda está em lugar de destaque. Havia esse lado também actual, que não é actual, mas que funciona como actual.
Mas são delas as coisas que aparecem no filme?
Não são delas as coisas que aparecem, excluindo no início aquele molho de fotografias da namorada, a caderneta daquela que deu aulas, os álbuns de fotografias do fim, , mas, tirando isso, nada delas foi utilizado para os cenários.
Nenhuma ideologia política aparece aqui explícita, apesar da corrente política da época.
Porque há muita reflexão posterior. Sobre a guerra há muito “já sabíamos que isto, nós sabíamos aquilo” e é um bocado a ideia do cristão-novo, não é? Isso, quando é dito, sente-se: “era muito revolucionária!”, não era nada. Também não lhes disse para não reflectirem, não fazerem uma reflexão de época, elas é que me contaram assim a história, aliás, elas foram muito honestas na forma como se apresentaram, porque muitas têm de parte uma ideologia, mesmo as enfermeiras, mais de esquerda do que aquilo que se pode imaginar, mas que acharam que não era isso que devia estar no filme. Aliás, há uma que eu acho muito interessante e que me identifico muito com ela (digo que é o meu alter-ego niilista). Ela entra pouco e diz que a consciência política dela era mínima e que a família dela não era nem do contra, nem a favor. Eu acho que foi de uma grande honestidade assumir, porque a tendência é “a minha família isto, a minha família aquilo”, eles queriam era viver a vida deles. Acho que é uma atitude muito corajosa, porque também não é muito normal dizê-lo. Sim, porque sabemos, heróis e resistentes de histórias da PIDE há muitos, histórias daqueles que falaram há muito poucas. Todos foram revolucionários, todos foram resistentes, ninguém foi informador. Fiquei desarmada quando ela disse aquilo, que não era do contra, nem a favor, e estamos a falar de uma rapariga que estava em Coimbra, ela percebia. Acho que ela foi de uma grande honestidade e desarmou-me completamente, ela estava em Coimbra, mas ela estava apaixonada, estava casada, estava mais interessada em estar com o amor dela do que propriamente em entrar nos esquemas de onde ela estava envolvida. Era aluna na Faculdade de Coimbra na altura, só que o que a movia na altura era estar com o amor dela. Depois há as que tinham, de facto, consciência, há as que não tinham consciência, há as que não percebiam nada, há as que percebiam tudo, e depois há essa senhora que pertencia ao Partido Comunista e continua a pertencer, é essa a vocação dela, e que eu achei que era essencial estar no filme, porque não fui eu que o disse.
Acho que é uma força do filme não tocar na ideologia e concentrar-se só nas histórias delas, mas normalmente quando alguém conta uma história desta época começa logo a definir-se.
Há uma enfermeira que diz (e elas só dizem o que acham que têm de dizer): “o meu pai estava muito imbuído em política” e estranhou ela ter ido para a guerra. O que é que significa o imbuído em política? Era do contra. Fica mal uma enfermeira pára-quedista agora vir dizê-lo para um filme. Quando falam do stress de guerra, há aquela que não consegue dizer o “defender a Pátria”, quer dizer aquele “defender a Pátria”, mas não está convencida daquilo que diz, a outra provavelmente mais lúcida com o namorado que estava emigrado em França e que achava que a melhor opção era ele fugir em vez de ir para a guerra, ele não o quis fazer, quis ir “defender a Pátria”, é a opção dele. Ela também faz assim um ar: “é a opção dele: defender a Pátria”. Por isso há ali um lado em que elas mostram aquilo que elas acham que devem mostrar da sua ideologia. Depois há outras que têm outras questões de uma urgência que não lhes permitiu falar dessa ideologia. Por exemplo, aquela senhora que passou uma vida desgraçada e que o marido nunca foi apoiado pelos militares, muito pelo contrário. Claro que a grande revolta dela é contra o meio militar; isso, para mim, também era muito importante lá estar. Felizmente o meu pai, que é militar, não se zangou *risos*
E reacções? Delas, da família, dos maridos...
Isto é tudo muito complicado e as reacções quando mete Guerra Colonial... Elas gostaram imenso do filme. Houve alguns que estiveram na Guerra Colonial que não viram dois terços do filme. Sei isso porque amigas minhas mo disseram: “não consegui ouvir dois terços do filme porque atrás de mim estavam uns fulanos...”, o que é que se passa? Muitos ex-combatentes vão ver estes filmes (sei que não é só o meu caso, porque já viram assim “A Costa dos Murmúrios” e estes filmes todos) é o reconhecimento dos sítios, quando elas dizem um nome eles ficavam a comentar “ai moeda! é aquele sítio... estive lá, sabes quem é que esteve lá em Moeda? ...” Portanto aquilo dissipa-se. A atenção deles não é propriamente uma atenção ao filme. Sei disso porque depois daqueles blogues muito famosos foram ao facebook mostrar as fotografias, fizeram uma boa propaganda, foram buscar as fotografias das senhoras e depois puseram umas legendas e estava tudo trocado porque não fizeram essa atenção.
Não houve reacções mais extremas?
Não. Houve reacções extremas, não propriamente no filme, mas quando fiz uma pequena apresentação, muito antes do filme, naqueles vídeos que a SAPO faz. Foi quando foi o 4 de Fevereiro (que foi logo uma grande polémica: “porque é que nós estamos a comemorar? O 4 de Fevereiro não é nosso, é deles”, grandes confusões) e os comentários, um bocado escudados pelo anonimato, que vinham a seguir, dezenas e dezenas, uns muito ofensivos em relação a mim, nem ouviram nada do que estava a dizer, outros aproveitaram o espaço do comentário para mandarem abraços para os companheiros, outros aproveitaram para dizer que “abandonámos aquilo!” e outros, como aquilo tinha sido ao pé das eleições presidenciais, acharam que era um bom espaço para dizer mais uma vez mal do Manuel Alegre, porque “diz mal dos militares e não foi lá e é um traidor à Pátria”, essas coisas todas. No meio disso tudo, havia alguns de senhoras que mostraram um grande interesse e que mesmo sem terem visto nada, porque aquilo ainda não era o filme, nem um “trailer”, era eu a falar do filme, ainda nem tinha a montagem feita, agradeciam.
Uma minoria?
Sim, uma minoria. Eram mais estas dos ex-combatentes e sei que é assim porque há uma grande intensidade e uma grande vivência daquelas coisas e há sempre uma grande defesa e uma grande pertença. Um dos grandes ataques deles é exactamente contra o documentário do Joaquim Furtado, isso é mais uma coisa que os transtorna, mas isso transtorna-os de outra forma, pela intensidade da descrição das operações e por ter os dois lados. Discutem muito isso e quem é que ele foi buscar, quem é que ele não foi buscar, porque é que foi buscar aquele e assim. Isso, para mim, no meu discurso eu estou descansadíssima *risos* porque, cada vez que me dizem que falta, digo “façam vocês o que quiserem, vão buscar essas pessoas...”
Não houve essa ideia? A ideia foi centrá-lo só em Portugal, não houve essa ideia?
Ir buscar as mulheres africanas? Isso havia de ser bonito.
O discurso seria o mesmo: eles vão, elas ficam, eles vão defender a Pátria ou libertá-la...
Não sei se seria parecido, porque elas estavam todas lá e eles estavam todos lá. Não sei até que ponto seria parecido, até porque havia outra coisa, é que muitos dos soldados portugueses também estavam com elas, não é? Também aparecem esses comentários [no filme]. Decidi ficar neste meu galho, consciente que já ia ser complicado, não só pelo filme em si.
É um filme muito português
É um filme muito português?
Acho, no sentido de que a submissão é típica portuguesa, o silêncio é típico português, lembro-me das filmagens antigas da faina, das mulheres na doca a despedirem-se, eles vão, depois voltam, elas fazem tudo por eles, só que neste caso num ambiente mais brutal, por isso digo “português”, se calhar estou enganado
Pois, não sei. Elas são portuguesas, eu sou portuguesa, somos todos portugueses. É uma guerra portuguesa, isso não há questão. É onde eu faço filmes, eu onde eu faço cinema, não quero fazer em outro lado... neste momento. Para mim é complicado pensar em questões africanas, já aconteceu tanta coisa em África! Estive há pouco tempo, há menos de dois meses, na Guiné e eles já tiveram tantas guerras lá, o assassinato do Nino Vieira foi há dois anos, tiveram as guerras deles, depois ninguém fala português, aquilo são ruínas atrás de ruínas, quer dizer, há ali tantas camadas! Nós não temos camadas, nós temos a Guerra Colonial. Os americanos então não têm camadas nenhumas. Aquilo é limpo. Nós não fizemos isso, nem na literatura. O que aconteceu nos Estados Unidos foi que o Vietname veio, fizeram-se vários filmes. Os ex-combatentes da guerra do ultramar viam-nos todos, identificaram-nos com a Guiné, especialmente os da Guiné. Grande catarse, ali tudo resolvido. Veteranos e os deficientes na rua, associações, lares, aquelas coisas todas dos Platoons, dos Apocalipses, dos Caçadores, tudo mexeu e depois está tudo resolvido. Agora vem o Golfo e estão nesta nova fase a fazer os filmes durante a guerra, tentando fazer estes filmes anti-guerra mascarados. Às tantas até gostava mais daquela série do Frank Capra “Why we fight” da Segunda Guerra Mundial, pelo menos tinha uns bonequinhos dos aviões e dos mapas, que eu gosto muito de filmes sobre guerra.
Há muitos filmes com fotografias: o “48” o ano passado, há uma pessoa associada ao Guillermo del Toro, já não sei se filho ou sobrinho, que fez um filme de ficção só com fotografias. É uma nova tendência? Este filme poderá inscrever-se nela?
Poderá porque é um filme que usa fotografias *risos*
Sim, mas refiro o uso mais intensivo das fotografias, como fotografias, não como imagem em si, mas o objecto da fotografia.
Pois claro que há, porque é o arquivo. O arquivo é uma coisa que já não é de agora. Quer dizer, a partir do livro do Roland Barthes, eu acho que o amor pela fotografia nunca mais acabou, por mais que a gente snobe ou tente negar, acho que andamos todos apaixonados pela fotografia, pela ideia do arquivo e a ideia do fantasma e o século XIX e o Holocausto. Tudo o que é ideia de arquivo e arquivo pessoal. Porque são imagens fortes. No outro dia aconteceu-me (isto não tem propriamente a ver com o filme), entrei no metro e vi um cartaz da Amnistia [Internacional] com fotografias da PIDE. Foi um choque tremendo ver fotografias da PIDE na parede do metro, não estava à espera. Eu fiquei chocada porque não é habitual naquele contexto e fiquei depois “mas são fotografias da PIDE!”. O registo, o arquivo mexeu comigo e depois, claro que me levou automaticamente a olhar à voltar e ver pessoas muito novas e já dos seus 60 anos e pensar, mas quantas destas pessoas ainda se lembrarão da PIDE e quantas das mais novas saberão que existiu a PIDE? Mas, de repente, tenho pespegado na parede estas três fotografias, não é? Que é o que também faz a força do “48”. Há essa procura e agora é questionamento. Por exemplo, o super8, nós não temos essa tradição, não se fazia muito. Aliás, eu não encontrei. Só encontrei uma senhora com o super8, mais ninguém no filme tinha esse tipo de arquivo, das senhoras do “quem vai à guerra”. Mas há muito essa relação com o ir buscar esse arquivo e preservá-lo, porque também há a ideia de que os arquivos em Portugal estão muito mal organizados e há aqui um lado precioso e raro e é a tal história: acho que vai ser muito difícil libertar-mo-nos do romântico dessa ligação. Depois, como os arquivos não funcionam bem e como essas coisas são tão frágeis, acho que se quer dar importância àquilo que realmente se ama ou que se aprende a amar.
Fonte: Artigo retirado do site
www.c7nema.net