Assim, a unidade e a diversidade dos sentidos são verdades de mesmo estatuto. O a priori é o fato compreendido, explicitado e seguido em todas as conseqüências de sua lógica tácita, e o a posteriori é o fato isolado e implícito.
Seria contraditório dizer que o tato é sem espacialidade, e é a priori impossível tocar sem tocar no espaço, já que nossa experiência é a experiência de um mundo. Mas esta inserção da perspectiva tátil em um ser universal não exprime nenhuma necessidade exterior ao tato, ela se produz espontaneamente na própria experiência tátil, segundo seu modo próprio. A sensação, tal como a experiência a entrega a nós, não é mais uma matéria indiferente e um momento abstrato, mas uma de nossas superfícies de contato com o ser, uma estrutura de consciência, e, em lugar de um espaço único, condição universal de todas as qualidades, nós temos com cada uma delas uma maneira particular de ser no espaço e, de alguma maneira, de fazer espaço. Não é nem contraditório nem impossível que cada sentido constitua um pequeno mundo no interior do grande, e é até mesmo em razão de sua particularidade que ele é necessário ao todo e se abre a este.
Em suma, uma vez apagadas as distinções entre o a priori e o empírico, entre a forma e o conteúdo, os espaços senso- riais tornam-se momentos concretos de uma configuração global que é o espaço único, e o poder de ir a ele não se separa do poder de retirar-se dele na separação de um sentido. Na sala de concerto, quando reabro os olhos, o espaço visível me parece acanhado em relação a este outro espaço em que onde havia pouco a música se desdobrava, e, mesmo se conservo os olhos abertos enquanto se toca a peça, parece-me que a música não está verdadeiramente contida neste espaço preciso e mesquinho. Através do espaço visível, ela insinua uma nova dimensão em que rebenta, assim como, nos alucinados, o espaço claro das coisas percebidas se redobra misteriosamente - sem que minha consciência em alguma medida se obstrua de um "espaço negro" em que outras presenças são possíveis. Assim como para mim a perspectiva do outro sobre o mundo, o domínio espacial de cada sentido é, para os outros sentidos, um incognoscível absoluto, e limita na mesma proporção a espacialidade deles. Essas descrições, que para uma filosofia criticista só oferecem curiosidades empíricas e não afetam as certezas a priori, readquirem para nós uma importância filosófica porque a unidade do espaço só pode ser encontrada na engrenagem dos domínios sensoriais uns nos outros. E isso que permanece verdadeiro nas famosas descrições empiristas de uma percepção não-espacial.
A experiência dos cegos de nascença operados de catarata nunca provou e nunca poderia provar que para eles o espaço começa com a visão. Mas o doente não deixa de maravilhar-se com este espaço visual ao qual acaba de ter acesso e em relação ao qual a experiência tátil lhe parece tão pobre que ele confessaria de bom grado jamais ter tido a experiência do espaço antes da operação'°. O espanto do doente, suas hesitações no novo mundo visual em que ele entra mostram que o tato não é espacial como a visão.
''Após a operação", diz-se, "a forma tal como é dada pela visão é para os doentes algo de absolutamente novo que eles não relacionam à sua experiência tátil"; "o doente afirma que vê, mas não sabe aquilo que vê (...) Ele nunca reconhece como tal a sua mão, ele só fala de uma mancha branca em movimento". Para distinguir pela visão um círculo de um retângulo, é preciso que ele siga com os olhos a extremidade da figura, como o faria com a mão, e ele sempre tende a pegar os objetos que se apresentam ao seu olhar, O que concluir daqui? Que a experiência tátil não prepara para a percepção do espaço? Mas, se ela não fosse de maneira alguma espacial, o sujeito estenderia a mão em direção ao objeto que lhe mostrassem? Esse gesto supõe que o tato se abre a um meio pelo menos análogo àquele dos dados visuais. Os fatos mostram sobretudo que a visão não é nada sem um certo uso do olhar. Os doentes "primeiramente vêem as cores assim como nós sentimos um odor: ele nos banha, age sobre nós, sem todavia preencher uma determinada forma de uma determinada extensão".
Primeiramente, tudo está misturado e tudo parece em movimento. A segregação das superfícies coloridas, a apreensão correta do movimento só vêm mais tarde, quando o paciente compreendeu "o que é ver'', quer dizer, quando ele dirige e passeia seu olhar como um olhar, e não mais como uma mão. Isso prova que cada órgão dos sentidos interroga o objeto à sua maneira, que ele é o agente de um certo tipo de síntese, mas, a menos que por definição nominal se reserve a palavra espaço para designar a síntese visual, não se pode recusar ao tato a espacialidade no sentido de apreensão das coexistências. O próprio fato de que a verdadeira visão se prepara no curso de uma fase de transição e por uma espécie de toque com os olhos não seria compreensível se não houvesse um campo tátil quase espacial em que as primeiras percepções visuais pudessem inserir-se. A visão nunca se comunicaria diretamente com o tato, como o faz no adulto normal, se o tato, mesmo artificialmente isolado, não fosse organizado de maneira a tornar possíveis as coexistências. Longe de excluir a idéia de um espaço tátil, os fatos provam, ao contrário, que existe um espaço tão estritamente tátil que suas articulações em primeiro lugar não estão e até mesmo nunca estarão em uma relação de sinonímia com aquelas do espaço visual. A análises empiristas põem confusamente um problema verdadeiro. Por exemplo, que o tato só possa abarcar simultaneamente uma pequena extensão - aquela do corpo e de seus instrumentos -' este fato não concerne apenas à apresentação do espaço tátil, ele modifica seu sentido.
Para a inteligência - ou, pelo menos, para uma certa inteligência que é aquela da física clássica -, a simultaneidade é a mesma, quer ela ocorra entre dois pontos contíguos ou entre dois pontos distantes, e em todo caso pode-se construir pouco a pouco, com simultaneidades a curta distância, uma simultaneidade a grande distância. Mas, para a experiência, a espessura de tempo que assim se introduz na operação modifica seu resultado, resulta daí um certo "movido" na simultaneidade dos pontos extremos e, nessa medida, para o cego operado a amplitude das perspectivas visuais será uma verdadeira revelação, porque ela proporcionará pela primeira vez a exibição da simultaneidade distante ela mesma. Os operados declaram que os objetos táteis não são verdadeiros todos espaciais, que aqui a apreensão do objeto é um simples "saber da relação recíproca das partes", que o círculo e o quadrado não são verdadeiramente percebidos pelo tato, mas reconhecidos a partir de certos "signos" - presença ou ausência de "pontas".
Entendamos que o campo tátil nunca tem a amplitude do campo visual, nunca o objeto tátil está presente por inteiro em cada uma de suas partes assim como o objeto visual, e em suma que tocar não é ver. Sem dúvida, entre o cego e o normal, a conversação se estabelece, e talvez seja impossível encontrar uma só palavra, mesmo no vocabulário das cores, à qual o cego não consiga dar um sentido pelo menos esquemático.
Um cego de doze anos define muito bem as dimensões da visão:
"Aqueles que vêem'', diz ele, "estão em relação comigo por um sentido desconhecido que à distância me envolve inteiramente, me segue, me atravessa e que, desde que me levanto até me deitar, me mantém, por assim dizer, sob sua dominação'' (mich gewissermassen beherrscht).
Mas para o cego essas indicações permanecem nocionais e problemáticas. Elas colocam uma questão à qual apenas a visão poderia responder. E é por isso que o cego operado acha o mundo diferente daquilo que ele esperava, assim como nós sempre achamos um homem diferente daquilo que sabíamos dele.
O mundo do cego e o do normal diferem não apenas pela quantidade dos materiais dos quais eles dispõem, mas ainda pela estrutura do conjunto. Um cego sabe exatamente, pelo tato, o que são galhos e folhas, um braço e os dedos da mão. Após a operação, ele se espanta por encontrar "tanta diferença" entre uma árvore e um corpo humano. É evidente que a visão não acrescentou apenas novos detalhes ao conhecimento da árvore. Trata-se de um modo de apresentação e de um tipo de síntese novos, que transfiguram o objeto. A estrutura iluminação/objeto iluminado, por exemplo, no domínio tátil só encontra analogias muito vagas. É por isso que um doente operado após dezoito anos de cegueira tenta tocar um raio de sol.
Transfiguration or The Blind II - Egon Schiele, 1915
A significação total de nossa vida - da qual a significação nocional é sempre apenas um extrato - seria diferente se fôssemos privados da visão. Existe uma função geral de substituição e de troca que nos permite ter acesso à significação abstrata das experiências que não vivemos e, por exemplo, permite-nos falar daquilo que não vimos. Mas, assim como no organismo as funções de substituição nunca equivalem exatamente às funções lesadas e só dão a aparência da integridade, a inteligência só assegura uma comunicação aparente entre experiências diferentes, e a síntese do mundo visual e do mundo tátil no cego de nascença operado, a constituição de um mundo intersensorial, deve fazer-se no próprio terreno sensorial, a comunidade de significação entre as duas experiências não basta para assegurar sua solda em uma experiência única. Os sentidos são distintos uns dos outros e distintos da intelecção, já que cada um deles traz consigo uma estrutura de ser que nunca é exatamente transponível. Nós podemos reconhecê-lo porque rejeitamos o formalismo da consciência e fizemos do corpo o sujeito da percepção.
E podemos reconhecê-lo sem comprometer a unidade dos sentidos. Pois os sentidos se comunicam. A música não está no espaço visível, mas ela o mina, o investe, o desloca, e em breve esses ouvintes muito empertigados, que assumem o ar de juízes e trocam palavras e sorrisos, sem perceber que o chão se abala sob eles, estarão como uma tripulação sacudida na área de uma tempestade. Os dois espaços só se distinguem sobre o fundo de um mundo comum, e só podem entrar em rivalidade porque ambos têm a mesma pretensão ao ser total.
Eles se unem no momento mesmo em que se opõem. Se quero encerrar-me em um de meus sentidos e, por exemplo, me projeto inteiro em meus olhos e abandono-me ao azul do céu, em breve não tenho mais consciência de olhar e, no momento em que queria fazer-me inteiro visão, o céu deixa de ser uma "percepção visual" para tornar-se meu mundo do momento. A experiência sensorial é instável e é estranha à percepção natural que se faz com todo o nosso corpo ao mesmo tempo e abre-se a um mundo intersensorial. Assim como a experiência da qualidade sensível, a experiência dos "sentidos" separados só ocorre em uma atitude muito particular e não pode servir para a análise da consciência direta. Estou sentado em meu quarto e olho as folhas de papel branco dispostas em minha mesa, umas iluminadas através da janela, outras na penumbra. Se não analisar minha percepção e se me ativer ao espetáculo global, direi que todas as folhas de papel me aparecem igualmente brancas. Todavia, algumas delas estão na sombra da parede. Como elas não são menos brancas do que as outras? Decido olhar melhor. Fixo nelas o meu olhar, quer dizer, limito meu campo visual. Posso até mesmo observá-las através de uma caixa de fósforos que as separa do resto do campo, ou através de um "anteparo de redução" aberto de uma janela.
Quer eu empregue algum desses dispositivos ou me contente em observar a olho nu, mas na "atitude analítica", o aspecto das folhas muda: não se trata mais de papel branco recoberto por uma sombra, trata-se de uma substância cinza ou azulada, espessa e mal localizada. Se considero novamente o conjunto do espetáculo, observo que as folhas sombreadas não eram e jamais foram idênticas às folhas iluminadas, nem tampouco objetivamente diferentes delas. A brancura do papel sombreado não se deixa classificar com precisão na série negro-branco. Ela não era nenhuma qualidade definida, e fiz a qualidade manifestar-se fixando meus olhos em uma porção do campo visual: agora e apenas agora me encontrei em presença de um certo quale em que meu olhar se afunda. Ora, o que é fixar? Do lado do objeto, é separar a região fixada do resto do campo, é interromper a vida total do espetáculo, que atribuía a cada superfície visível uma coloração determinada, levando em conta a iluminação; do lado do sujeito, é substituir à visão global, na qual nosso olhar se presta a todo o espetáculo e se deixa invadir por este, uma observação, quer dizer, uma visão local que ele governa ao seu modo. A qualidade sensível, longe de ser coextensiva à percepção, é o produto particular de uma atitude de curiosidade ou de observação. Ela aparece quando, em lugar de abandonar todo o meu olhar no mundo, volto-me para este próprio olhar e pergunto-me o que rejo exatamente; ela não figura no comércio natural de minha visão com o mundo, ela é a resposta a uma certa questão de meu olhar, o resultado de uma visão secundária ou crítica que procura conhecer-se em sua particularidade, de uma "atenção ao visual puro" que exerço ou quando temo ter- me enganado, ou quando quero empreender um estudo científico da visão. Essa atitude faz o espetáculo desaparecer: as cores que vejo através do anteparo de redução, ou aquelas que o pintor obtém entrecerrando os olhos, não são mais coresobjetos - a cor das paredes ou a cor do papel -, mas superfícies coloridas não sem espessura, todas vagamente localizadas no mesmo plano fictício. Assim, existe uma atitude natural da visão em que conspiro com meu olhar e através dele me entrego ao espetáculo: agora as partes do campo estão ligadas em uma organização que as torna reconhecíveis e identificáveis. A qualidade, a sensorialjdade separada, produz-se quando rompo essa estruturação total de minha visão, quando deixo de aderir ao meu próprio olhar e, em lugar de viver a visão, interrogo-me sobre ela, quero testar minhas possibilidades desfaço o elo entre minha visão e o mundo, entre mim mesmo e minha visão, para surpreendê-la e descrevê-la. Nessa atitude, ao mesmo tempo em que o mundo se pulveriza em qualidades sensíveis, a unidade natural do sujeito perceptivo é rompida e chego a ignorar-me enquanto sujeito de um campo visual. Ora, assim como, no interior de cada sentido, é preciso reencontrar a unidade natural, faremos aparecer uma "camada originária" do sentir que é anterior à divisão dos sentidos. Conforme eu fixe um objeto ou deixe meus olhos divergirem, ou enfim me abandone por inteiro ao acontecimento, a mesma cor me aparece como cor superficial (OberJiáchenfarbe) - ela está em um lugar definido do espaço, estende-se sobre o objeto - ou então ela se torna cor atmosférica (Raumfarbe) e difusa em torno do objeto; ou então eu a sinto em meu olho como uma vibração de meu olhar; ou enfim ela comunica a todo o meu corpo uma mesma maneira de ser, ela me preenche e não merece mais o nome de cor. Da mesma maneira, há um som objetivo que ressoa fora de mim no instrumento, um som atmosférico que está entre o objeto e meu corpo, um som que vibra em mim "como se eu me tivesse tornado a flauta ou o pêndulo"; e enfim um último estágio em que o elemento sonoro desaparece e torna-se a experiência, aliás muito precisa, de uma modificação de todo o meu corpo. A experiência sensorial só dispõe de uma margem estreita: ou o som e a cor, por seu arranjo próprio, desenham um objeto, o cinzeiro, o violão, e esse objeto fala de uma só vez a todos os sentidos; ou então, na outra extremidade da experiência, o som e a cor são recebidos em meu corpo, e torna-se difícil limitar minha experiência a um único registro sensorial: espontaneamente, ela transborda para todos os outros. A experiência sensorial, no terceiro estágio que descrevíamos há pouco, só se especifica por um "acento" que indica antes a direção do som ou a da cor. Neste nível, a ambigüidade da experiência é tal que um ritmo auditivo faz imagens cinematográficas se fundirem e dá lugar a uma percepção de movimento, quando sem apoio auditivo a mesma sucessão de imagens seria muito lenta para provocar o movimento estroboscópico. Os sons modificam as imagens consecutivas das cores: um som mais intenso as intensifica, a interrupção do som as faz vacilar, um som baixo torna o azul mais escuro ou mais profundo. A hipótese de constância, que para cada estímulo atribui uma e apenas uma sensação, é tanto menos verificada quanto mais nos aproximamos da percepção natural. "E na medida em que a conduta é intelectual e imparcial (sachlicher) que a hipótese de constância se torna aceitável no que diz respeito à relação entre o estímulo e a resposta sensorial específica, e qúe o estímulo sonoro, por exemplo, limita-se à esfera específica, aqui a esfera auditiva.
A intoxicação pela mescalina, porque compromete a atitude imparcial e entrega o sujeito à sua vitalidade, deverá favorecer então as sinestesias. De fato, sob efeito de mescalina, um som de flauta causa uma cor azul forte, o ruído de um metrônomo se traduz na obscuridade por manchas cinzas, os intervalos espaciais da visão correspondem aos intervalos temporais dos sons, a grandeza da mancha cinza à intensidade do som, sua altura no espaço à altura do som. Um paciente sob efeito de mescalina encontra um pedaço de ferro, bate no batente da janela e "Eis a magia", diz ele: as árvores ficam mais verdes. O latido de um cão atrai a iluminação de uma maneira indescritível, e repercute no pé direito.
Tudo se passa como se víssemos "caírem algumas vezes as barreiras estabelecidas entre os sentidos no curso da evolução". Na perspectiva do mundo objetivo, com suas qualidades opacas, e do corpo objetivo, com seus órgãos separados, o fenômeno das sinestesias é paradoxal. Procura-se então explicá-lo sem tocar no conceito de sensação; será preciso, por exemplo, supor que as excitações ordinariamente circunscritas a uma região do cérebro - zona ótica ou zona auditiva - tornam-se capazes de intervir fora desses limites, e que assim à qualidade específica acha-se associada uma qualidade não-específica.
Quer tenha ou não ao seu favor argumentos de fisiologia cerebral, essa explicação não dá conta da experiência sinestésica, que se torna assim uma nova ocasião de colocar em questão o conceito de sensação e o pensamento objetivo. Pois o sujeito não nos diz apenas que ele tem ao mesmo tempo um som e uma cor: é o próprio som que ele vê no lugar em que se formam as cores. Essa fórmula é literalmente desprovida de sentido se se define a visão pelo quale visual, o som pelo quale sonoro. Mas cabe a nós construir nossas definições de maneira a encontrar-lhe um, já que a visão dos sons ou a audição das cores existem como fenômenos. E eles não são nem mesmo fenômenos excepcionais. A percepção sinestésica é a regra, e, se não percebemos isso, é porque o saber científico desloca a experiência e porque desaprendemos a ver, a ouvir e, em geral, a sentir, para deduzir de nossa organização corporal e do mundo tal como o concebe o físico aquilo que devemos ver, ouvir e sentir.
A visão, diz-se, só pode apresentar-nos cores ou luzes, e com elas formas, que são os contornos das cores, e movimentos, que são as mudanças de posição das manchas de cor. Mas como situar na escala das cores a transparência ou as cores "turvas''? Na realidade, cada cor, no que ela tem de mais íntimo, não é senão a estrutura interior da coisa manifestada no exterior.
O brilho do ouro apresenta-nos sensivelmente sua composição homogênea, a cor embaçada da madeira apresenta-nos a sua composição heterogênea. Os sentidos comunicam-se entre si e abrem-se à estrutura da coisa. Vemos a rigidez e a fragilidade do vidro e, quando ele se quebra com um som cristalino, este som é trazido pelo vidro visível. Vemos a elasticidade do aço, a maleabilidade do aço incandescente, a dureza da lâmina em uma plaina, a moleza das aparas.
A forma dos objetos não é seu contorno geométrico: ela tem uma certa relação com sua natureza própria e fala a todos os nossos sentidos ao mesmo tempo em que fala à visão. A forma de uma prega em um tecido de linho ou de algodão nos faz ver a flexibilidade ou a secura da fibra, a frieza ou o calor do tecido. Enfim, o movimento dos objetos visíveis não é o simples deslocamento das manchas de cor que lhes correspondem no campo visual. No movimento do galho que um pássaro acaba de abandonar, lemos sua flexibilidade ou sua elasticidade, e é assim que um galho de macieira e um galho de bétula imediatamente se distinguem. Vemos o peso de um bloco de ferro que se afunda na areia, a fluidez da água, a viscosidade do xarope. Da mesma maneira, no ruído de um automóvel ouço a dureza e a desigualdade dos paralelepípedos, e com razão fala-se em um ruído "frouxo", "embaçado" ou "seco". Se se pode duvidar de que a audição nos dê verdadeiras "coisas", pelo menos é certo que ela nos oferece, para além dos sons no espaço, algo que "rumoreja" e, através disso, ela se comunica com os outros sentidos. Enfim, se curvo, com os olhos fechados, uma haste de aço e um galho de tfiia, percebo entre minhas mãos a textura mais secreta do metal e da madeira. Portanto, se considerados como qualidades incomparáveis, os "dados dos diferentes sentidos" dependem de tantos mundos separados, cada um deles, em sua essência particular, sendo uma maneira de modular a coisa, todos eles se comunicam através de seu núcleo significativo.
E preciso apenas precisar a natureza da significação sensível, sem o que voltaríamos à análise intelectualista que mais acima descartamos. E a mesma mesa que toco e que vejo. Mas seria preciso acrescentar, como já se fez: é a mesma sonata que eu ouço e que Helen Keller toca, é o mesmo homem que eu vejo e que um pintor cego pinta?
Pouco a pouco não haveria mais nenhuma diferença entre a síntese perceptiva e a síntese intelectual. A unidade dos sentidos seria da mesma ordem que a unidade dos objetos da ciência. Quando ao mesmo tempo eu toco e observo um objeto, o objeto único seria a razão comum dessas duas aparências, assim como Vênus é a razão comum da Estrela da Manhã e da Estrela da Tarde, e a percepção seria uma ciência principiante. Ora, se a percepção reúne nossas experiências sensoriais em um mundo único, não é como a coligação científica junta objetos ou fenômenos, é como a visão binocular apreende um único objeto.
Descrevamos de perto esta "síntese". Quando meu olhar está fixado no infinito, tenho uma imagem dupla dos objetos próximos. Quando por sua vez eu os fixo, vejo as duas imagens se reaproximarem juntas daquilo que vai ser o objeto único, e desaparecerem nele. Aqui, não se deve dizer que a síntese consiste em pensá-las em conjunto como imagens de um único objeto; se se tratasse de um ato espiritual ou de uma apercepção, ele deveria produzir-se assim que observo a identidade das duas imagens, quando de fato a unidade do objeto se faz aguardar por muito mais tempo: até o momento em que a fixação as escamoteia. O objeto único não é uma certa maneira de pensar as duas imagens, já que elas deixam de ser dadas no momento em que ele aparece. A "fusão das imagens" foi obtida então por algum dispositivo inato ao sistema nervoso, e nós queremos dizer que, no final das contas, se não na periferia, pelo menos no centro nós temos apenas uma única excitação mediada pelos dois olhos? Mas a simples existência de um centro visual não pode explicar o objeto único, já que por vezes a diplopia se produz, assim como, aliás, a simples existência de duas retinas não pode explicar a diplopia, já que ela não é constante.
Se pudermos compreender a diplopia tanto quanto o objeto único da visão normal, não será pela disposição anatômica do aparelho visual, mas por seu funcionamento e pelo uso que dele faz o sujeito psicofísico. Diremos então que a diplopia se produz porque nossos olhos não convergem para o objeto e porque em nossas duas retinas se formam imagens não-simétricas? Diremos que as duas imagens se fundem porque a fixação as reconduz a pontos homólogos das duas retinas? Mas a divergência e a convergência dos olhos são a causa ou o efeito da diplopia e da visão normal? Nos cegos de nascença operados da catarata não se poderia dizer, no período que se segue à operação, se é a incoordenação dos olhos que impede a visão ou se é a confusão do campo visual que favorece a incoordenação - se eles não vêem por não fixar ou se não fixam por não ter algo para ver. Quando olho para o infinito e, por exemplo, um de meus dedos situado perto de meus olhos projeta sua imagem em pontos não-simétricos de minhas retinas, a disposição das imagens nas retinas não pode ser a causa do movimento de fixação que porá fim à diplopia. Pois, como se fez observar, o desaparecimento das imagens não existe em si. Meu dedo forma sua imagem em uma certa área de minha retina esquerda e em uma área da retina direita que não é simétrica à primeira. Mas a área simétrica da retina direita é preenchida, ela também, de excitações visuais; a repartição dos estímulos nas duas retinas só é "dissimétrica" em relação a um sujeito que compara as duas constelações e as identifica. Nas próprias retinas, consideradas como objetos, só existem dois conjuntos de estímulos incomparáveis. Responder-se-á talvez que, a menos que haja um movimento de fixação, esses dois conjuntos não podem sobrepor-se, nem dar lugar à visão de coisa alguma, e que nesse sentido sua presença, por si só, cria um estado de desequilíbrio. Mas isso é justamente admitir aquilo que procuramos mostrar: que a visão de um objeto único não é um simples resultado da fixação, que ela é antecipada no próprio ato de fixação ou que, como o disseram, a fixação do olhar é uma "atividade prospectiva". Para que meu olhar se reporte aos objetos próximos e neles concentre os olhos, é preciso que ele sinta a diplopia como um desequilíbrio ou como uma visão imperfeita, e que ele se oriente para o objeto único corno para a resolução dessa tensão e a conclusão da visão. "E preciso 'olhar' para ver." Portanto, a unidade do objeto na visão binocular não resulta de algum processo em terceira pessoa, que finalmente produziria uma imagem única fundindo as duas imagens monoculares. Quando se passa da diplopia à visão normal, o objeto único substitui as duas imagens e visivelmente não é sua simples sobreposição: ele é de outra ordem que elas, incomparavelmente mais sólido do que elas. Na visão binocular, as duas imagens da diplopia não são amalgamadas em uma só, e a unidade do objeto é intencional.
Mas - eis-nos no ponto a que queríamos chegar - ela não é por isso uma unidade nocional. Passa-se da diplopia ao objeto único não por uma inspeção do espfrito, mas quando, os dois olhos deixam de funcionar cada um por sua conta e são utilizados por um olhar único como um só órgão. Não é o sujeito epistemológico que efetua a síntese, é o corpo, quando sai de sua dispersão, se ordena, se dirige por todos os meios para um termo único de seu movimento, e quando, pelo fenômeno da sinergia, uma intenção única se concebe nele. Nós só retiramos a síntese do corpo objetivo para atribuí-la ao corpo fenomenal, quer dizer, ao corpo enquanto ele projeta em torno de si um certo ''meio'', enquanto suas "partes'' se conhecem dinamicamente umas às outras, e seus receptores se dispõem de maneira a tornar possível, por sua sinergia, a percepção do objeto.
Dizendo que essa intencionalidade não é um pensamento, queremos dizer que ela não se efetua na transparência de uma consciência, e que ela toma por adquirido todo o saber latente que meu corpo tem de si mesmo. Apoiada na unidade pré-lógica do esquema corporal, a síntese perceptiva não possui o segredo do objeto, assim como o do corpo próprio, e é por isso que o objeto percebido se oferece sempre como transcendente, é por isso que a síntese parece fazer-se no próprio objeto, no mundo, e não neste ponto metafísico que é o sujeito pensante, é nisso que a síntese perceptiva se distingue da síntese intelectual. Quando passo da diplopia à visão normal, não tenho consciência apenas de ver pelos dois olhos o mesmo objeto, tenho consciência de progredir para o objeto ele mesmo e de ter enfim a sua presença carnal. As imagens monoculares erravam vagamente diante das coisas, elas não tinham lugar no mundo, e repentinamente elas se retiram para um certo lugar do mundo e ali são tragadas, assim como os fantasmas, à luz do dia, voltam para a fissura da terra de onde tinham saído. O objeto binocular absorve as imagens monoculares, e é nele que se faz a síntese, é em sua clareza que elas enfim se reconhecem como aparências desse objeto. A série de minhas experiências apresenta-se como concordante e a síntese tem lugar não enquanto elas exprimem todas um certo invariante e na identidade do objeto, mas enquanto elas são todas recolhidas pela última delas e na ipseidade da coisa. Bem entendido, a ipseidade nunca é atingida: cada aspecto da coisa que cai sob nossa percepção é novamente apenas um convite a perceber para além e uma parada momentânea no processo perceptivo. Se a coisa mesma fosse atingida, doravante ela estaria exposta diante de nós e sem mistério. Ela deixaria de existir como coisa no momento mesmo em que acreditaríamos possuí-la. Portanto, o que faz a "realidade" da coisa é justamente aquilo que a subtrai à nossa posse. A ipseidade da coisa, sua presença irrecusável, e a ausência perpétua na qual ela se entrincheira são dois aspectos inseparáveis da transcendência.
O intelectualismo ignora um e outro, e, se queremos dar conta da coisa enquanto termo transcendente de uma série aberta de experiências, é preciso atribuir ao sujeito da percepção a própria unidade aberta e indefinida do esquema corporal. Eis o que nos ensina a síntese da visão binocular. Apliquemo-lo ao problema da unidade dos sentidos. Ela não se compreenderá por sua subsunção a uma consciência originária, mas por sua integração nunca acabada em um único organismo cognoscente. O objeto intersensorial está para o objeto visual assim como o objeto visual está para as imagens monoculares da diplopia, e na percepção os sentidos se comunicam assim como na visão os dois olhos colaboram. A visão dos sons ou a audição das cores se realizam como se realiza a unidade do olhar através dos dois olhos: enquanto meu corpo é não uma soma de órgãos justapostos, mas um sistema sinérgico do qual todas as funções são retomadas e ligadas no movimento geral do ser no mundo, enquanto ele é a figura imobilizada da existência. Há um sentido em dizer que vejo sons ou que ouçocores, se a visão ou a audição não são a simples posse de um quale opaco, mas a experiência de uma modalidade da existência, a sincronização de meu corpo a ela, e o problema das sinestesias recebe um começo de solução se a experiência da qualidade é a de um certo modo de movimento ou a de uma conduta.
Quando digo que vejo um som quero dizer que, à vibração do som, faço eco através de todo o meu ser sensorial e, em particular, através desse setor de mim mesmo que é capaz das cores. O movimento, compreendido não como movimento objetivo e deslocamento no espaço, mas como projeto de movimento ou "movimento virtual", é o fundamento da unidade dos sentidos. E bastante conhecido que o cinema falado não apenas acrescenta ao espetáculo um acompanhamento sonoro, ele modifica o teor do próprio espetáculo. Quando assisto à projeção de um filme dublado em francês, não somente constato o desacordo entre a fala e a imagem, mas repentinamente me parece que ali se diz outra coisa, e, enquanto a sala e meus ouvidos são preenchidos pelo texto dublado, para mim ele não tem existência nem mesmo auditiva, e só tenho ouvidos para esta outra fala sem ruídos que vem da tela. Quando subitamente uma panne deixa sem voz o personagem, que continua a gesticular na tela, não é apenas o sentido de seu discurso que de repente me escapa: o espetáculo também é alterado, O rosto, há pouco animado, se embota e se imobiliza como o de um homem embaraçado, e a interrupção do som invade a tela sob a forma de uma espécie de estupor. Junto ao espectador, os gestos e as falas não são subsumidos a uma significação ideal, mas a fala retoma o gesto, e o gesto retoma a fala, eles se comunicam através de meu corpo, assim como os aspectos sensoriais de meu corpo, eles são imediatamente simbólicos um do outro, porque meu corpo é justamente um sistema acabado de equivalências e de transposições intersensoriais. Os sentidos traduzem-se uns nos outros sem precisar de um intérprete, compreendem-se uns aos outros sem precisar passar pela idéia. Essas observações permitem dar todo o seu sentido à frase de Herder: "O homem é um sensorium comum perpétuo, que é tocado ora de um lado e ora do outro." Com a noção de esquema corporal, não é apenas a unidade do corpo que é descrita de uma maneira nova, é também, através dela, a unidade dos sentidos e a unidade do objeto. Meu corpo é o lugar, ou antes a própria atualidade do fenômeno de expressão (Ausdruck), nele a experiência visual e a experiência auditiva, por exemplo, são pregnantes uma da outra, e seu valor expressivo funda a unidade antepredicativa do mundo percebido e, através dela, a expressão verbal (Darstellung) e a significação intelectual (Bedeutung). Meu corpo é a textura comum de todos os objetos e é, pelo menos em relação ao mundo percebido, o instrumento geral de minha "compreensão''.
E ele que dá um sentido não apenas ao objeto natural, mas ainda a objetos culturais como as palavras. Se se apresenta uma palavra a um sujeito durante um tempo muito curto para que ele possa decifrá-la, a palavra "quente", por exemplo, induz uma espécie de experiência do calor que forma em torno dele como que um halo significativo. A palavra "duro" suscita uma espécie de rigidez das costas e do pescoço, e é secundariamente que ela se projeta no campo visual ou auditivo e adquire sua figura de signo ou de vocábulo. Antes de ser o índice de um conceito, primeiramente ela é um acontecimento que se apossa de meu corpo, e suas ações sobre meu corpo circunscrevem a zona de significação à qual ela se reporta. Um sujeito declara que, à apresentação da palavra ''úmido" (Jeuchi), ele experimenta, além de um sentimento de umidade e de frio, todo um remanejamento do esquema corporal, como se o interior do corpo viesse para a periferia, e como se a realidade do corpo, reunida até então nos braços e nas pernas, procurasse recentrar-se. Agora a palavra não é distinta da atitude que ela induz, e é apenas quando sua presença se prolonga que ela aparece como imagem exterior e sua significação como pensamento. As palavras têm uma fisionomia porque nós temos em relação a elas, assim como em relação a cada pessoa, uma certa conduta que aparece de um só golpe a partir do momento em que elas são dadas. "Tento apreender a palavra rot (vermelho) em sua expressão viva; mas primeiramente ela é para mim apenas periférica, é apenas um signo com o saber de sua significação. Ela própria não é vermelha. Mas repentinamente observo que a palavra abre uma passagem em meu corpo. E o sentimento - difícil de descrever - de uma espécie de plenitude atordoante que invade meu corpo e que ao mesmo tempo dá à minha cavidade bucal uma forma esférica. E, precisamente nesse momento, observo que a palavra no papel recebe seu valor expressivo, ela vem ao meu encontro em um halo vermelho escuro, enquanto a letra o apresenta intuitivamente essa cavidade esférica que antes senti em minha boca. Essa conduta da palavra permite compreender, particularmente, que a palavra seja indissoluvelmente algo que se diz, que se ouve e que se vê. "A palavra lida não é uma estrutura geométrica em um segmento de espaço visual, ela é a apresentação de um comportamento e de um movimento lingüístico em sua plenitude dinâmica." Quer se trate de perceber palavras ou, mais geralmente, objetos, "há uma certa atitude corporal, um modo específico de tensão dinâmica que é necessária para estruturar a imagem; o homem enquanto totalidade dinâmica deve enformar-se a si mesmo para traçar uma figura em seu campo visual enquanto parte do organismo psicofísico". Em suma, meu corpo não é apenas um objeto entre todos os outros objetos, um complexo de qualidades entre outros, ele é um objeto sensível a todos os outros, que ressoa para todos os SOnS, vibra para todas as cores, e que fornece às palavras a sua significação primordial através da maneira pela qual ele as acolhe. Não se trata aqui de reduzir a significação da palavra "quente" a sensações de calor, segundo as fórmulas empiristas. Pois o calor que sinto lendo a palavra "quente" não é um calor efetivo. Ele é apenas o meu corpo que se prepara para o calor e que desenha, por assim dizer, a sua forma. Da mesma maneira, quando nomeiam diante de mim uma parte de meu corpo, ou quando eu represento para mim, sinto no ponto correspondente uma quase-sensação de contato, que é apenas a emergência dessa parte de meu corpo no esquema corporal total. Portanto, nós não reduzimos a significação da palavra e nem mesmo a significação do percebido a uma soma de "sensações corporais", mas dizemos que o corpo, enquanto tem "condutas", é este estranho objeto que utiliza suas próprias partes como simbólica geral do mundo, e através do qual, por conseguinte, podemos "freqüentar" este mundo, "compreendê-lo" e encontrar uma significação para ele.
Tudo isso, dir-se-á, tem sem dúvida algum valor como descrição da aparência. Mas o que nos importa se, no final das contas, essas descrições não querem dizer nada que se possa pensar e se a reflexão os convence do não-senso? No plano da opinião, o corpo próprio é ao mesmo tempo objeto constituído e constituinte em relação aos outros objetos. Mas, se se quer saber de que se fala, é preciso escolher e, em última análise, recolocá-lo do lado do objeto constituído. Com efeito, de duas coisas uma: ou eu me considero no meio do mundo, inserido nele por meu corpo, que se deixa investir por relações de causalidade, e então ''os sentidos'' e "o corpo" são aparelhos materiais e não conhecem absolutamente nada; o objeto forma uma imagem nas retinas, e no centro ótico a imagem retiniana se desdobra em uma outra imagem, mas ali só existem coisas para ver e ninguém que veja, somos indefinidamente reenviados de uma etapa corporal à outra, supomos no homem um "pequeno homem" e neste um outro, sem nunca chegar à visão. Ou então quero verdadeiramente compreender como existe visão, mas então é preciso que eu saia do constituído, daquilo que é em si, e apreenda por reflexão um ser para quem o objeto possa existir. Ora, para que o objeto possa existir em relação ao sujeito, não basta que este "sujeito" o envolva com o olhar ou o apreenda assim como minha mão apreende este pedaço de madeira, é preciso ainda que ele saiba que o apreende ou o olha, que ele se conheça apreendendo ou olhando, que seu ato seja inteiramente dado a si mesmo e que, enfim, este sujeito seja somente aquilo que ele tem consciência de ser, sem o que nós teríamos uma apreensão do objeto ou um olhar o objeto para um terceiro testemunho, mas o pretenso sujeito, por não ter consciência de si, se dispersaria em seu ato e não teria consciência de nada. Para que haja visão do objeto ou percepção tátil do objeto, faltará sempre aos sentidos essa dimensão de ausência, essa irrealidade pela qual o sujeito pode ser saber de si e o objeto pode existir para ele. A consciência do ligado pressupõe a consciência do ligante e de seu ato de ligação, a consciência de objeto pressupõe a consciência de si, ou antes elas são sinônimas. Portanto, se existe consciência de algo é porque o sujeito não é absolutamente nada, e as "sensações", a "matéria" do conhecimento, não são momentos ou habitantes da consciência, elas estão do lado do constituído. O que podem nossas descrições contra essas evidências, e como elas escapariam a essa alternativa? Retornemos à experiência perceptiva. Percebo esta mesa na qual escrevo. Isso significa, entre outras coisas, que meu ato de percepção me ocupa, e me ocupa o suficiente para que eu não possa, enquanto efetivamente percebo a mesa, perceber-me percebendo-a. Quando quero fazê-lo, deixo, por assim dizer, de mergulhar na mesa através de meu olhar, volto-me para mim que percebo, e me dou conta então de que minha percepção precisou atravessar certas aparências subjetivas, interpretar certas "sensações" minhas, enfim ela aparece na perspectiva de minha história individual. E a partir do ligado que tenho, secundariamente, consciência de uma atividade de ligação, quando, assumindo a atitude analítica, decomponho a percepção em qualidades e em sensações e quando, para encontrar a partir delas o objeto no qual primeiramente eu estava jogado, sou obrigado a supor um ato de síntese que não é senão a contrapartida de minha análise. Meu ato de percepção, considerado na sua ingenuidade, não efetua ele mesmo essa síntese, ele se beneficia de um trabalho já feito, de uma síntese geral constituída de uma vez por todas, é isso que exprimo ao dizer que percebo com meu corpo ou com meus sentidos, meu corpo, meus sentidos, sendo justamente este saber habitual do mundo, essa ciência implícita ou sedimentada. Se minha consciência constituísse atualmente o mundo que percebe, dela a ele não haveria nenhuma distância e, entre eles, nenhuma defasagem possível; ela o penetraria até em suas articulações mais secretas, a intencionalidade nos transportaria ao interior do objeto, e com isso o percebido não teria a espessura de um presente, a consciência não se perderia, não se enviscaria nele. Ao contrário, temos consciência de um objeto inesgotável e estamos afundados nele como em areia movediça porque, entre ele e nós, existe este saber latente que nosso olhar utiliza, do qual apenas presumimos que seu desenvolvimento racional seja possível, e que permanece sempre para aquém de nossa percepção. Como dizíamos, se toda percepção tem algo de anônimo, é porque ela retoma um saber que não põe em questão. Aquele que percebe não está desdobrado diante de si como uma consciência deve estar, ele tem uma espessura histórica, retoma uma tradição perceptiva e é confrontado com um presente. Na percepção, nós não pensamos o objeto e não nos pensamos pensando-o, nós somos para o objeto e confundimo-nos com esse corpo que sabe mais do que nós sobre o mundo, sobre os motivos e os meios que se têm de fazer sua síntese. Foi por isso que dissemos, com Herder, que o homem éum sensonum comum. Nessa camada originária do sentir que recuperamos sob a condição de coincidir verdadeiramente com o ato de percepção e de abandonar a atitude crítica, vivo a unidade do sujeito e a unidade intersensorial da coisa, eu não os penso como o farão a análise reflexiva e a ciência. - Mas o que é o ligado sem a ligação, o que é este objeto que ainda não é objeto para alguém? A reflexão psicológica, que põe meu ato de percepção como um acontecimento de minha história, pode muito bem ser secundária. Mas a reflexão transcendental, que me mostra como o pensador intemporal do objeto, não introduz nele nada que ali já não esteja: ela se limita a formular aquilo que dá um sentido a "a mesa", "a cadeira", aquilo que faz estável a sua estrutura e torna possível minha experiência da objetividade. Enfim, o que é viver a unidade do objeto ou do sujeito, senão fazê-la? Mesmo se se supõe que ela aparece com o fenômeno de meu corpo, não é preciso que eu a pense nele para encontrá-la ali, e que eu faça a síntese desse fenômeno para ter sua experiência?
- Nós não procuramos extrair o para si do em si, não retornamos a uma forma qualquer de empirismo, e o corpo ao qual confiamos a síntese do mundo percebido não é um puro dado, uma coisa passivamente acolhida. Mas para nós a síntese perceptiva é uma síntese temporal; a subjetividade, no plano da percepção, não é senão a temporalidade, e é isso que nos permite preservar no sujeito da percepção a sua opacidade e sua historicidade. Abro os olhos à minha mesa, minha consciência é abarrotada de cores e de reflexos confusos, ela mal se distingue daquilo que se oferece a ela, através de seu corpo ela se espalha no espetáculo que ainda não é espetáculo de nada. Repentinamente, fixo a mesa que ainda não está ali, olho à distância quando ainda não há profundidade, meu corpo centra-se em um objeto ainda virtual e dispõe suas superfícies sensíveis de maneira a torná-lo atual. Posso remeter assim ao seu lugar no mundo o algo que me atingia porque posso, afastando-me no futuro, remeter ao passado imediato a primeira investida do mundo em meus sentidos, e orientar- me em direção ao objeto determinado assim como em direção a um futuro próximo. O ato do olhar é indivisivelmente prospectivo, já que o objeto está no termo de meu movimento de fixação, e retrospectivo, já que ele vai apresentar-se como anterior à sua aparição, como o "estímulo", o motivo ou o primeiro motor de todo o processo desde o seu início. A síntese espacial e a síntese do objeto estão fundadas neste desdobramento do tempo. Em cada movimento de fixação, meu corpo ata em conjunto um presente, um passado e um futuro, ele secreta tempo, ou antes torna-se este lugar da natureza em que, pela primeira vez, os acontecimentos, em lugar de impelirem-se uns aos outros no ser, projetam em torno do presente um duplo horizonte de passado e de futuro e recebem uma orientação histórica. Aqui existe a invocação, mas não a experiência de um naturante eterno. Meu corpo toma posse do tempo, ele faz um passado e um futuro existirem para um presente, ele não é uma coisa, ele faz o tempo em lugar de padecê-lo. Mas todo ato de fixação deve ser renovado, sob pena de cair na inconsciência, O objeto só fica nítido diante de meus olhos se eu o percorro com os olhos, a volubilidade é uma propriedade essencial do olhar. O acesso que ele nos dá a um segmento de tempo, a síntese que ele efetua são eles mesmos fenômenos temporais, escoam-se e só podem subsistir retomados em um novo ato, ele mesmo temporal. A pretensão à objetividade de cada ato perceptivo é retomada pelo seguinte, outra vez frustrada e novamente retomada. Este malogro perpétuo da consciência perceptiva era previsível desde o seu começo. Se só posso ver o objeto distanciando-o no passado é porque, assim como a primeira investida do objeto nos meus sentidos, a percepção que a sucede ocupa e também oblitera minha consciência, é então porque por sua vez ela vai passar, porque o sujeito da percepção nunca é uma subjetividade absoluta, porque ele está destinado a tornar-se objeto para um Eu ulterior. A percepção existe sempre no modo do "Se". Ela não é um ato pessoal pelo qual eu mesmo daria um sentido novo à minha vida. Aquele que, na exploração sensorial, atribui um passado ao presente e o orienta para um futuro não sou eu enquanto sujeito autônomo, sou eu enquanto tenho um corpo e enquanto sei "olhar". Antes de não ser uma história verdadeira, a percepção atesta e renova em nós uma "pré-história". E ainda isso é essencial ao tempo; não haveria o presente, quer dizer, o sensível com sua espessura e sua riqueza inesgotável, se a percepção, para falar como Hegel, não conservasse um passado em sua profundidade presente, e não o contraísse em si. Ela não faz atualmente a síntese de seu objeto, não que ela o receba passivamente, à maneira empirista, mas porque a unidade do objeto aparece pelo tempo, e porque o tempo escapa a si na medida em que ele se retoma. Graças ao tempo, tenho um encaixe e uma retomada das experiências anteriores nas experiências ulteriores, mas em parte alguma uma posse absoluta de mim por mim, já que o vazio do futuro se preenche sempre com um novo presente. Não existe objeto ligado sem ligação e sem sujeito, nenhuma unidade sem unificação, mas toda síntese é simultaneamente distendida e refeita pelo tempo que, em um único movimento, a põe em questão e a confirma porque ele produz um novo presente que retém o passado. A alternativa entre o naturado e o naturante transforma-se então em uma dialética do tempo constituído e do tempo constituinte. Se devemos resolver o problema que nos colocamos - o da sensorialidade, quer dizer, da subjetividade finita -, será refletindo no tempo e mostrando como ele só é para uma subjetividade, já que sem ela, o passado em si não sendo mais e o futuro em si não sendo ainda, não haveria tempo - e como todavia essa subjetividade é o próprio tempo, como podemos dizer, com Hegel, que o tempo é a existência do espírito ou falar, com Husserl, de uma autoconstituição do tempo.
Por ora, as descrições precedentes e as que vão seguir-se nos familiarizam com um novo gênero de reflexão, do qual esperamos a solução de nossos problemas. Para o intelectualismo, refletir é afastar ou objetivar a sensação e fazer aparecer, diante dela, um sujeito vazio que possa percorrer este diverso e para quem ele possa existir. Na medida mesma em que o intelectualismo purifica a consciência esvaziando-a de toda opacidade, ele faz dela uma verdadeira coisa, e a apreensão dos conteúdos concretos, o encontro entre essa coisa e o espírito, torna-se impensável.
Se se responde que a matéria do conhecimento é um resultado da análise e não deve ser tratada como um elemento real, é preciso admitir, correlativamente, que a unidade sintética da apercepção é, ela também, uma formulação nocional da experiência, que não devemos atribuir a ela valor originário e, em suma, que a teoria do conhecimento deve ser recomeçada.
Convimos, por nosso lado, que a matéria e a forma do conhecimento são resultados da análise. Ponho uma matéria do conhecimento quando, rompendo com a fé originária da percepção, adoto em relação a ela uma atitude crítica e me pergunto "o que verdadeiramente vejo". A tarefa de uma reflexão radical, quer dizer, daquela que quer compreender-se a si mesma, consiste, de uma maneira paradoxal, em reencontrar a experiência irrefletida do mundo, para recolocar nela a atitude de verificação e as operações reflexivas, e para fazer a reflexão aparecer como uma das possibilidades de meu ser. O que temos então no começo? Não um múltiplo dado com uma apercepção sintética que o percorre de um lado a outro, mas um certo campo perceptivo sobre fundo de mundo. Aqui nada é tematizado. Nem o objeto nem o sujeito são postos. No campo originário, não se tem um mosaico de qualidades, mas uma configuração total que distribui os valores funcionais segundo a exigência do conjunto, e por exemplo, como vimos, um papel "branco" na penumbra não é branco no sentido de uma qualidade objetiva, mas vale como branco. Aquilo que chamamos de sensação é apenas a mais simples das percepções e, enquanto modalidade da existência, ela não pode, assim como nenhuma percepção, separar-se de um fundo que, enfim, é o mundo. Correlativamente, cada ato perceptivo manifesta-se como antecipado em uma adesão global ao mundo. No centro desse sistema, um poder de suspender a comunicação vital ou, pelo menos, de restringi-la, apoiando nosso olhar em uma parte do espetáculo e consagrando-lhe todo o campo perceptivo. Não é preciso, vimos, realizar na experiência primordial as determinações que serão obtidas na atitude crítica, nem por conseguinte falar de uma síntese atual quando o múltiplo ainda não está dissociado.
Seria preciso então rejeitar a idéia de síntese e a idéia de uma matéria do conhecimento?
Diríamos que a percepção revela os objetos assim como uma luz os ilumina na noite, seria preciso retomar por nossa conta este realismo que, dizia Malebranche, imagina a alma saindo pelos olhos e visitando os objetos no mundo? Isso não nos livraria da idéia de síntese, já que para perceber uma superfície, por exemplo, não basta visitá-la, é preciso reter os momentos do percurso e ligar um ao outro os pontos da superfície. Mas vimos que a percepção originária é uma experiência não-tética, pré-objetiva e pré-consciente.
Digamos então provisoriamente que existe somente uma matéria de conhecimento possível. De cada ponto do campo primordial partem intenções, vazias e determinadas; efetuando essas intenções, a análise chegará ao objeto de ciência, à sensação enquanto fenômeno privado, e ao sujeito puro que põe um e outro. Esses três termos só estão no horizonte da experiência primordial. E na experiência da coisa que se fundará o ideal reflexivo do pensamento tético. Portanto, a própria reflexão só apreende seu sentido pleno se menciona o fundo irrefletido que ela pressupõe, do qual tira proveito, e que constitui para ela como que um passado original, um passado que nunca foi presente.
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FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO
(excerto: parte II, cap. I)
Maurice Merleau-Ponty
[1908-1961]
Título original: PHÉNOMÉNOLOGIE DE LA PERCEPTION.
Éditions Gallimard, 1945.
tradução: Carlos Alberto Ribeiro de Moura
Livraria Martins Fontes, São Paulo, 1994