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Autor Tópico: O MUNDO PERCEBIDO: O SENTIR - FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO (excerto)  (Lida 1430 vezes)

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O MUNDO PERCEBIDO: O SENTIR


in Fenomenologia da Percepção


Maurice Merleau-Ponty


“La prose du monde” - Maurice Merleau-Ponty (espectáculo interpretado por Patrick Verschueren e Didier Mahieu)

 

«Aqueles que vêem'', diz ele, "estão em relação comigo por um sentido desconhecido
que à distância me envolve inteiramente, me segue, me atravessa e que, desde que
me levanto até me deitar, me mantém, por assim dizer, sob sua dominação»
***


O MUNDO PERCEBIDO

O corpo próprio está no mundo assim como o coração no organismo; ele mantém o espetáculo visível continuamente em vida, anima-o e alimenta-o interiormente, forma com ele um sistema. Quando caminho em meu apartamento, os diferentes aspectos sob os quais ele se apresenta a mim não poderiam aparecer-me como os perfis de uma mesma coisa se eu não soubesse que cada um deles representa o apartamento visto daqui ou visto dali, se eu não tivesse consciência de meu próprio movimento e de meu corpo como idêntico através das fases desse movimento.

Evidentemente, posso sobrevoar o apartamento em pensamento, imaginá-lo ou desenhar sua planta no papel, mas mesmo então eu não poderia apreender a unidade do objeto sem a mediação da experiência corporal, pois aquilo que chamo de uma planta é apenas uma perspectiva mais ampla: é o apartamento "visto de cima", e, se posso resumir nela todas as perspectivas costumeiras, é sob a condição de saber que um mesmo sujeito encarnado pode ver alternadamente de diferentes posições. Responder-se-á talvez que, recolocando o objeto na experiência corporal como um dos pólos dessa experiência, nós lhe retiramos justamente aquilo que faz sua objetividade.

Do ponto de vista de meu corpo, nunca vejo iguais as seis faces do cubo, mesmo se ele é de vidro, e todavia a palavra "cubo" tem um sentido; o cubo ele mesmo, o cubo na verdade, para além de suas aparências sensíveis, tem suas seis faces iguais. À medida que giro em torno dele, vejo a face frontal, que era um quadrado, deformar-se, depois desaparecer, enquanto os outros lados aparecem e tornam-se cada um, por sua vez, quadrados. Mas para mim o desenrolar dessa experiência é apenas a ocasião de pensar o cubo total com suas seis faces iguais e simultâneas, a estrutura inteligível que lhe dá razão. E, mesmo para que minha caminhada em torno do cubo motive o juízo ''eis um cubo", é preciso que meus deslocamentos estejam eles mesmos localizados no espaço objetivo e, longe de a experiência do movimento próprio condicionar a posição de um objeto, ao contrário é pensando meu próprio corpo como um objeto móvel que posso decifrar a aparência perceptiva e construir o cubo verdadeiro. Portanto, a experiência do movimento próprio seria apenas uma circunstância psicológica da percepção e não contribuiria para determinar o sentido do objeto.

O objeto e meu corpo formariam um sistema, mas tratar-se-ia de um feixe de correlações objetivas e não, como dizíamos há pouco, de um conjunto de correspondências vividas. A unidade do objeto seria pensada, e não experimentada como o correlativo da unidade de nosso corpo. Mas o objeto poderia ser separado assim das condições efetivas sob as quais ele nos é dado?

Pode-se reunir discursivamente a noção do número seis, a noção de "lado" e a de igualdade, e ligá-las em uma fórmula que é a definição do cubo. Mas essa definição antes nos põe uma questão do que nos oferece algo a pensar. Só se sai do pensamento cego e simbólico percebendo o ser espacial singular que traz esses predicados em conjunto. Trata-se de desenhar em pensamento esta forma particular que encerra um fragmento de espaço entre seis faces iguais. Ora, se para nós as palavras "encerrar'' e "entre" têm um sentido, é porque elas o tomam de empréstimo à nossa experiência de sujeitos encarnados.

No espaço ele mesmo e sem a presença de um sujeito psicofísico não há nenhuma direção, nenhum dentro, nenhum fora. Um espaço está "encerrado" entre os lados de um cubo assim como estamos encerrados entre as paredes de nosso quarto. Para poder pensar o cubo, tomamos posição no espaço, ora em sua superfície, ora nele, ora fora dele, e desde então nós o vemos em perspectiva. O cubo com seis faces iguais é não apenas invisível, mas ainda impensável; ele é o cubo tal como seria para si mesmo, já que ele é um objeto. Há um primeiro dogmatismo, do qual a análise reflexiva nos livra, e que consiste em afirmar que o objeto é em si ou absolutamente, sem perguntar-se o que ele é. Mas há um outro, que consiste em afirmar a significação presuntiva do objeto, sem perguntar-se como ela entra em nossa experiência. A análise reflexiva substitui a existência absoluta do objeto pelo pensamento de um objeto absoluto e, querendo sobrevoar o objeto, pensá-lo sem ponto de vista, ela destrói sua estrutura interna. Se para mim existe um cubo com seis faces iguais e se posso alcançar o objeto, não é que eu o constitua do interior: é porque pela experiência perceptiva eu me afundo na espessura do mundo. O cubo com seis faces iguais é a idéia-limite pela qual exprimo a presença carnal do cubo que está ali, sob meus olhos, sob minhas mãos, em sua evidência perceptiva. Os lados do cubo não são suas projeções, mas justamente lados. Quando eu os percebo um após o outro e segundo a aparência perspectiva, não construo a idéia do geometral que dá razão dessas perspectivas, mas o cubo já está ali diante de mim e desvela-se através delas. Não preciso ter uma visão objetiva de meu próprio movimento e levá-lo em conta para reconstituir, atrás da aparência, a forma verdadeira do objetivo: o cômputo já está feito, a nova aparência já entrou em composição com o movimento vivido e ofereceu-se como aparência de um cubo. A coisa e o mundo me são dados com as partes de meu corpo não por uma "geometria natural", mas em uma conexão viva comparável, ou antes idêntica à que existe entre as partes de meu próprio corpo.

A percepção exterior e a percepção do corpo próprio variam conjuntamente porque elas são as duas faces de um mesmo ato. Desde há muito tempo tentou-se explicar a famosa ilusão de Aristóteles admitindo que a posição inabitual dos dedos torna impossível a síntese de suas percepções: o lado direito do médio e o lado esquerdo do indicador normalmente não "trabalham" em conjunto, e, se ambos são tocados simultaneamente, então é preciso que existam duas bolas. Na realidade, as percepções dos dois dedos não são apenas disjuntas, elas são inversas: o sujeito atribui ao indicador o que é tocado pelo médio e reciprocamente, como se pode mostrálo aplicando aos dedos dois estímulos distintos, uma ponta e uma esfera por exemplo.

A ilusão de Aristóteles é antes de tudo um distúrbio do esquema corporal. O que torna impossível a síntese das duas percepções táteis em um objeto único não é tanto o fato de que a posição dos dedos é inabitual ou estatisticamente rara, é o fato de que a face direita do médio e a face esquerda do indicador não podem cooperar em uma exploração sinérgica do objeto, o fato de que o cruzamento dos dedos, enquanto movimento forçado, ultrapassa as possibilidades motoras dos próprios dedos e não pode ser visada em um projeto de movimento. Portanto, aqui a síntese do objeto se faz através da síntese do corpo próprio, ela é sua réplica ou seu correlativo, e literalmente é a mesma coisa perceber uma única bola e dispor dos dois dedos como de um órgão único, O distúrbio do esquema corporal pode até mesmo traduzir-se diretamente no mundo exterior sem o apoio de nenhum estímulo. Na heautoscopia, antes de verse a si mesmo, o sujeito passa sempre por um estado de sonho, de devaneio ou de angústia, e a imagem dele mesmo que aparece no exterior é apenas o avesso dessa despersonalização.

No duplo que está fora dele, o doente sente-se assim como, em um elevador que sobe e se detém bruscamente, eu sinto a substância de meu corpo escapar de mim por minha cabeça e ultrapassar os limites de meu corpo objetivo. É em seu próprio corpo que o doente sente a aproximação deste Outro que ele nunca viu com seus próprios olhos, assim como o normal reconhece por uma certa queimação em sua nuca que alguém atrás dele o olha. Reciprocamente, uma certa forma de experiência externa implica e acarreta uma certa consciência do corpo próprio. Muitos doentes falam de um "sexto sentido" que lhes manifestaria suas alucinações. O paciente de Stratton, cujo campo visual foi objetivamente invertido, primeiramente vê os objetos de cabeça para baixo; no terceiro dia da experiência, quando os objetos começam a readquirir seu aprumo, ele é invadido "pela estranha impressão de olhar o fogo com o dorso de sua cabeça". Isso ocorre porque há uma equivalência imediata entre a orientação do campo visual e a consciência do corpo próprio enquanto potência desse campo, de tal forma que a subversão experimental pode traduzir-se indiferentemente pela inversão dos objetos fenomenais ou por uma redistribuição das funções sensoriais no corpo. Se um sujeito se adapta para a visão a grande distância, ele tem de seus dedos, assim como de todos os objetos próximos, uma imagem dupla. Se o tocam ou se um inseto o pica, ele percebe um contato ou uma picada dupla. A diplopia prolonga-se então em um desdobramento do corpo.

Toda percepção exterior é imediatamente sinônima de uma certa percepção de meu corpo, assim como toda percepção de meu corpo se explicita na linguagem da percepção exterior.

Agora, como vimos, se o corpo não é um objeto transparente e não nos é dado por sua lei de constituição assim como o círculo ao geômetra, se ele é uma unidade expressiva que só quando assumida se pode aprender a conhecer, então essa estrutura vai comunicar-se ao mundo sensível. A teoria do esquema corporal é implicitamente uma teoria da percepção. Nós reaprendemos a sentir nosso corpo, reencontramos, sob o saber objetivo e distante do corpo, este outro saber que temos dele porque ele está sempre conosco e porque nós somos corpo.

Da mesma maneira, será preciso despertar a experiência do mundo tal como ele nos aparece enquanto estamos no mundo por nosso corpo, enquanto percebemos o mundo com nosso corpo. Mas, retomando assim o contato com o corpo e com o mundo, é também a nós mesmos que iremos reencontrar, já que, se percebemos com nosso corpo, o corpo é um eu natural e como que o sujeito da percepção.


O SENTIR

O pensamento objetivo ignora o sujeito da percepção. Isso ocorre porque ele se dá o mundo inteiramente pronto, como meio de todo acontecimento possível, e trata a percepção como um desses acontecimentos. Por exemplo, o filósofo empirista considera um sujeito X prestes a perceber e procura descrever aquilo que se passa: existem sensações que são estados ou maneiras de ser do sujeito e que, a esse título, são verdadeiras coisas mentais.

O sujeito perceptivo é o lugar dessas coisas, e o filósofo descreve as sensações e seu substrato como se descreve a fauna de um país distante - sem perceber que ele mesmo percebe, que ele é sujeito perceptivo e que a percepção, tal como ele a vive, desmente tudo o que ele diz da percepção em geral. Pois, vista do interior, a percepção não deve nada àquilo que nós sabemos de outro modo sobre o mundo, sobre os estímulos tais como a física os descreve e sobre os órgãos dos sentidos tais como a biologia os descreve. Em primeiro lugar, ela não se apresenta como um acontecimento no mundo ao qual se possa aplicar, por exemplo, a categoria de causalidade, mas a cada momento como uma re-criação ou uma reconstituição do mundo.

Se acreditamos em um passado do mundo, no mundo físico, nos "estímulos", no organismo tal como nossos livros o representam, é primeiramente porque temos um campo perceptivo presente e atual, uma superfície de contato com o mundo ou perpetuamente enraizada nele, é porque sem cessar ele vem assaltar e investir a subjetividade, assim como as ondas envolvem um destroço na praia. Todo saber se instala nos horizontes abertos pela percepção.

Não se pode tratar de descrever a própria percepção como um dos fatos que se produzem no mundo, já que a percepção é a "falha" deste "grande diamante". Certamente, o intelectualismo representa um progresso na tomada de consciência: aquele lugar fora do mundo que o filósofo empirista subentendia e onde tacitamente ele se situava para descrever o acontecimento da percepção recebe agora um nome, figura na descrição. E o Ego transcendental. Através disso, todas as teses do empirismo encontram-se reviradas, o estado de consciência torna-se consciência de um estado, a passivividade torna-se posição de uma passividade, o mundo torna-se o correlativo de um pensamento do mundo e só existe para um constituinte. E todavia permanece verdadeiro que o próprio intelectualismo se dá o mundo inteiramente pronto. Pois a constituição do mundo, tal como ele a concebe, é uma simples cláusula de estilo: a cada termo da descrição empirista acrescenta-se o índice "consciência de...".

Subordina-se todo o sistema da experiência - mundo, corpo próprio, eu empírico - a um pensador universal encarregado de produzir as relações dos três termos. Mas, como ele não está envolvido no sistema, as relações continuam a ser aquilo que eram no empirismo: relações de causalidade desdobradas no plano dos acontecimentos cósmicos. Ora, se o corpo próprio e o eu empírico são apenas elementos no sistema da experiência, objetos entre outros objetos sob o olhar do verdadeiro Eu, como pudemos algum dia confundir-nos com nosso corpo, como pudemos acreditar que víamos com nossos olhos aquilo que na verdade apreendíamos por uma inspeção do espírito, como o mundo não é perfeitamente explícito diante de nós, por que ele só se desdobra pouco a pouco e nunca "inteiramente", enfim como ocorre que nós percebamos? Nós só o compreenderemos se o eu empírico e o corpo não forem imediatamente objetos, nunca se tornarem totalmente objetos, se houver um certo sentido em dizer que vejo o pedaço de cera com meus olhos e se, correlativamente, esta possibilidade de ausência, esta dimensão de fuga e de liberdade que a reflexão abre no fundo de nós e que chamam de Eu transcendental em primeiro lugar não forem da- das e nunca forem absolutamente adquiridas, se nunca puder dizer "Eu" absolutamente, e se todo ato de reflexão, toda tomada de posição voluntária se estabelecerem sobre o fundo e sobre a proposição de uma vida de consciência pré-pessoal. O sujeito da percepção permanecerá ignorado enquanto não soubermos evitar a alternativa entre o naturante e o naturado, entre a sensação enquanto estado de consciência e enquanto consciência de um estado, entre a existência em si e a existência para si. Retornemos então à sensação e observemo-la de tão perto que ela nos ensine a relação viva daquele que percebe com seu corpo e com seu mundo.

A psicologia indutiva nos auxiliará a procurar para ela um novo estatuto, mostrando que a sensação não é nem um estado ou uma qualidade, nem a consciência de um estado ou de uma qualidade. De fato, cada uma das pretensas qualidades - o vermelho, o azul, a cor, o som - está inserida em uma certa conduta. No normal, uma excitação sensorial, sobretudo as do laboratório que para ele quase não têm significação vital, mal modifica a motricidade geral. Mas as doenças do cerebelo ou do córtex frontal evidenciam aquilo que poderia ser a influência das excitações sensoriais no tônus muscular se elas não estivessem integradas a uma situação de conjunto e se no normal o tônus não estivesse regulado em vista de certas tarefas privilegiadas.

O gesto de levantar o braço, que se pode tomar como indicador da perturbação motora, é diferentemente modificado em sua amplitude e em sua direção por um campo visual vermelho, amarelo, azul ou verde. O vermelho e o amarelo, particularmente, favorecem os movimentos escorregadios, o azul e o verde os movimentos bruscos, o vermelho aplicado ao olho direito, por exemplo, favorece um movimento de extensão para o exterior do braço correspondente, o verde favorece um movimento de flexão e de recuo em direção ao próprio corpo'. A posição privilegiada do braço - aquela em que o sujeito sente seu braço em equilíbrio ou em repouso -, que no doente é mais distanciada do corpo do que no normal, é modificada pela apresentação das cores: o verde a leva para a vizinhança do corpo. A cor do campo visual torna as reações do sujeito mais ou menos exatas, quer se trate de executar um movimento de uma amplitude dada ou de mostrar com o dedo um comprimento determinado. Com um campo visual verde, a apreciação é exata; com um campo visual vermelho, ela é inexata por excesso. Os movimentos para o exterior são acelerados pelo verde e atrasados pelo vermelho. A localização dos estímulos na pele é modificada pelo vermelho no sentido da abdução. O amarelo e o vermelho acentuam os erros na estimativa do peso e do tempo; nos cerebelosos, eles são compensados pelo azul e sobretudo pelo verde. Nessas diferentes experiências, cada cor age sempre no mesmo sentido, de forma que se pode atribuir a elas um valor motor definido. No conjunto, o vermelho e o amarelo são favoráveis à abdução, o azul e o verde à adução.

Ora, de uma maneira geral, a adução significa que o organismo se volta para o estímulo e é atraído pelo mundo; a abdução, que ele se desvia do estímulo e retira-se para seu centro. Portanto, as sensações, as "qualidades sensíveis", estão longe de se reduzir à experiência de um certo estado ou de um certo quale indizíveis, elas se oferecem com uma fisionomia motora, estão envolvidas por uma significação vital. Sabe-se há muito tempo que existe um "acompanhamento motor" das sensações, que os estímulos desencadeiam "movimentos nascentes" que se associam à sensação ou à qualidade e formam um halo em torno dela, que o "lado perceptivo" e o "lado motor" do comportamento se comunicam. Mas a maior parte do tempo se faz como se essa relação não mudasse nada nos termos entre os quais ela se estabelece. Pois não se trata, nos exemplos que dávamos acima, de uma relação exterior de causalidade que deixaria intacta a própria sensação. As reações motoras provocadas pelo azul, a "conduta do azul", não são efeitos, no corpo objetivo, da cor definida por um certo comprimento de onda e uma certa intensidade: um azul obtido por contraste e ao qual não corresponde então nenhum fenômeno físico envolve-se do mesmo halo motor.

Não é no mundo do físico e pelo efeito de algum processo escondido que se constitui a fisionomia motora da cor. Seria então "na consciência", e seria preciso dizer que a experiência do azul enquanto qualidade sensível suscita uma certa modificação do corpo fenomenal? Mas não se vê por que a tomada de consciência de um certo quale modificaria minha apreciação das grandezas e, aliás, o efeito sentido da cor nem sempre corresponde exatamente à influência que ela exerce no comportamento: o vermelho pode exagerar minhas reações sem que eu me aperceba disso.

Só se compreende a significação motora das cores se elas deixam de ser estados fechados sobre si mesmos ou qualidades indescritíveis oferecidas à constatação de um sujeito pensante, se elas atingem em mim uma certa montagem geral pela qual sou adaptado ao mundo, se elas me convidam a uma nova maneira do avaliar e se, por outro lado, a motricidade deixa de ser a simples consciência de minhas mudanças de lugar presentes ou futuras para tornar-se a função que, a cada momento, estabelece meus padrões de grandeza, a amplitude variável de meu ser no mundo. O azul é aquilo que solicita de mim uma certa maneira de olhar, aquilo que se deixa apalpar por um movimento definido de meu olhar. Ele é um certo campo ou uma certa atmosfera oferecida à potência de meus olhos e de todo o meu corpo. Aqui a experiência da cor confirma e faz compreender as correlações estabelecidas pela psicologia indutiva. Comumente o verde passa por uma cor "repousante". "Ele me fecha em mim mesmo e me põe em paz", diz uma doente. Ele "não nos pede nada e não nos convoca a nada", diz Kandinsky. O azul parece "ceder ao nosso olhar", diz Goethe. Ao contrário, o vermelho "entranha-se no olho", diz Goethe ainda. O vermelho "dilacera", o amarelo é "picante", diz um doente de Goldstein. De uma maneira geral, temos de um lado, com o vermelho e o amarelo, "a experiência de um arrancamento, de um movimento que se distancia do centro", e de um outro lado, com o azul e o verde, temos a experiência do "repouso e da concentração.

Pode-se evidenciar o fundo vegetativo e motor, a significação vital das qualidades, empregando estímulos fracos ou breves. A cor, antes de ser vista, anuncia-se então pela experiência de uma certa atitude do corpo que só convém a ela e a determina com precisão: "Há um deslizamento de alto abaixo em meu corpo, portanto isso não pode ser verde, só pode ser azul; mas de fato não vejo o azul"9, diz um outro paciente. E um outro: "Cerrei os dentes e sei por isso que é amarelo.'"0 Se se faz um estímulo luminoso crescer pouco a pouco a partir de um valor subliminar, primeiramente se experimenta uma certa disposição do corpo e, repentinamente, a sensação continua e "se propaga no domínio visual". Assim como, ao olhar atentamente a neve, eu decomponho sua "brancura" aparente, que se resolve em um mundo de reflexos e de transparências, da mesma maneira pode-se descobrir uma"micromelodia" no interior do som, e o intervalo sonoro é apenas a enformação final de uma certa tensão sentida em primeiro lugar em todo o corpo. Torna-se possível a representação de uma cor, em pacientes que a perderam, expondo diante deles cores reais, quaisquer que elas sejam.

A cor real produz no paciente uma "concentração da experiência colorida" que lhe permite "ordenar as cores em seu olho". Assim, antes de ser um espetáculo objetivo, a qualidade deixa-se reconhecer por um tipo de comportamento que a visa em sua essência, e é por isso que, a partir do momento em que meu corpo adota a atitude do azul, eu obtenho uma quase-presença do azul. Portanto, não é preciso perguntar-se como e por que o vermelho significa o esforço ou a violência, o verde o repouso e a paz, é preciso reaprender a viver essas cores como nosso corpo as vive, quer dizer, como concreções de paz ou de violência.

Quando dizemos que o vermelho aumenta a amplitude de nossas reações, não se deve entendê-lo como se se tratasse ali de dois fatos distintos, uma sensação de vermelho e reações motoras - é preciso compreender que o vermelho, por sua textura que nosso olhar segue e esposa, já é a amplificação de nosso ser motor.

O sujeito da sensação não é nem um pensador que nota uma qualidade, nem um meio inerte que seria afetado ou modificado por ela; é uma potência que co-nasce em um certo meio de existência ou se sincroniza com ele. As relações entre aquele que sente e o sensível são comparáveis às relações entre o dormidor e seu sono: o sono vem quando uma certa atitude voluntária repentinamente recebe do exterior a confirmação que ela esperava. Eu respirava lenta e profundamente para chamar o sono e, repentinamente, dir-se-ia que minha boca se comunica com algum imenso pulmão exterior que chama e detém minha respiração; um certo ritmo respiratório, há pouco desejado por mim, torna-se meu próprio ser, e o sono, até ali visado enquanto significação, repentinamente se faz situação. Da mesma maneira, dou ouvidos ou olho à espera de uma sensação e, repentinamente, o sensível toma meu ouvido ou meu olhar, eu entrego uma parte de meu corpo ou mesmo meu corpo inteiro a essa maneira de vibrar e de preencher o espaço que é o azul ou o vermelho. Assim como o sacramento não apenas simboliza uma operação da Graça sob espécies sensíveis, mas é ainda a presença real de Deus, faz com que ela resida em um fragmento de espaço e a comunica àqueles que comem o pão consagrado, se eles estão interiormente preparados, do mesmo modo o sensível não apenas tem uma significação motora e vital, mas é uma certa maneira de ser no mundo que se propõe a nós de um ponto do espaço, que nosso corpo retoma e assume se for capaz, e a sensação é literalmente uma comunhão. Desse ponto de vista, torna-se possível restituir à noção de "sentidos" um valor que o intelectualismo lhe recusa.

Minha sensação e minha percepção, diz ele, só podem ser designáveis e, portanto, só podem ser para mim se forem sensação ou percepção de algo, por exemplo sensação de azul ou de vermelho, percepção da mesa ou da cadeira. Ora, o azul e o vermelho não são esta experiência indizível que eu vivo quando coincido com eles, a mesa ou a cadeira não são esta aparência efêmera à disposição de meu olhar; o objeto só se determina como um ser identificável através de uma série aberta de experiências possíveis, e só existe para um sujeito que opera esta identificação. O ser só é para alguém que seja capaz de recuar em relação a ele e que portanto esteja absolutamente fora do ser. E assim que o espírito se torna o sujeito da percepção e que a noção de "sentidos" se torna impensável. Se ver ou ouvir for afastar-se da impressão para investi-la em pensamento e deixar de ser para conhecer, seria absurdo dizer que vejo com meus olhos ou que ouço com meus ouvidos, pois meus olhos e meus ouvidos ainda são seres do mundo, incapazes, então, de preparar diante deste a zona de subjetividade de onde ele será visto ou ouvido. Não posso nem mesmo conservar alguma potência de conhecer aos meus olhos ou aos meus ouvidos fazendo deles instrumento de minha percepção, pois esta noção é ambígua, eles só são instrumentos da excitação corporal e não da própria percepção. Não há meio-termo entre o em si e o para si, e já que meus sentidos, sendo vários, não são eu mesmo, eles só podem ser objetos.

Digo que meus olhos vêem, que minha mão toca, que meu pé dói, mas essas expressões ingênuas não traduzem minha experiência verdadeira. Elas já me dão dela uma interpretação que a afasta de seu sujeito original. Porque sei que a luz atinge meus olhos, que os contatos se fazem pela pele, que meu sapato fere meu pé, disperso em meu corpo as percepções que pertencem à minha alma, coloco a percepção no percebido. Mas aquilo é apenas o rastro espacial e temporal dos atos de consciência. Se os considero do interior, encontro um único conhecimento sem lugar, uma alma sem partes, e não há nenhuma diferença entre pensar e perceber, assim como entre ver e ouvir. Podemos manter-nos nessa perspectiva? Se é verdade que não vejo com meus olhos, como pude ignorar sempre esta verdade? Eu não sabia o que dizia, não tinha refletido? Mas, então, como eu podia não refletir? Como a inspeção do espírito, como a operação de meu próprio pensamento me pôde ser mascarada, já que meu pensamento, por definição, é para si mesmo? Se a reflexão quer justificar-se enquanto reflexão, quer dizer, enquanto progresso em direção à verdade, ela não deve se limitar a substituir uma visão do mundo por uma outra, ela deve mostrar-nos como a visão ingênua do mundo é compreendida e ultrapassada na visão refletida.

A reflexão deve iluminar o irrefletido ao qual ela sucede e mostrar sua possibilidade para poder compreender-se a si mesma enquanto começo. Dizer que sou eu ainda que me penso como situado em um corpo e como provido de cinco sentidos evidentemente é apenas uma solução verbal, já que eu que reflito não posso reconhecerme nesse Eu encarnado, já que portanto a encarnação permanece por princípio uma ilusão e já que a possibilidade dessa ilusão continua incompreensível. Precisamos colocar em questão a alternativa entre o para si e o em si, que rejeitava os "sentidos" no mundo dos objetos e resgatava a subjetividade como absoluto não-ser de toda inerência corporal.

É isso que fazemos quando definimos a sensação como coexistência ou como comunhão. A sensação de azul não é o conhecimento ou a posição de um certo quale identificável através de todas as experiências que tenho dele, assim como o círculo do geômetra é o mesmo em Paris e em Tóquio. Sem dúvida, ela é intencional, quer dizer, não repousa em si como uma coisa, mas visa e significa para além de si mesma. Mas o termo que ela visa só é reconhecido cegamente pela familiaridade de meu corpo com ele, não é constituído em plena clareza, mas reconstituído ou retomado por um saber que permanece latente e que lhe deixa sua opacidade e sua ecceidade.

A sensação é intencional porque encontro no sensível a proposição de um certo ritmo de existência - abdução ou adução - e porque, dando seqüência a essa proposição, introduzindo-me na forma de existência que assim me é sugerida, reporto-me a um ser exterior, seja para abrir-me seja para fechar-me a ele. Se as qualidades irradiam em torno de si um certo modo de existência, se elas têm um poder de encantamento e aquilo que há pouco chamávamos de um valor sacramental, é porque o sujeito que sente não as põe como objetos, mas simpatiza com elas, as faz suas e encontra nelas a sua lei momentânea.

Esclareçamos. Aquele que sente e o sensível não estão um diante do outro como dois termos exteriores, e a sensação não é uma invasão do sensível naquele que sente. E meu olhar que subtende a cor, é o movimento de minha mão que subtende a forma do objeto, ou antes meu olhar acopla-se à cor, minha mão acopla-se ao duro e ao mole, e nessa troca entre o sujeito da sensação e o sensível não se pode dizer que um aja e que o outro padeça, que um dê sentido ao outro. Sem a exploração de meu olhar ou de minha mão, e antes que meu corpo se sincronize a ele, o sensível é apenas uma solicitação vaga.

"Se um sujeito tenta experimentar uma cor determinada, por exemplo o azul, ao mesmo tempo em que procura dar ao seu corpo a atitude que convém ao vermelho, resulta daí uma luta interior, uma espécie de espasmo que cessa assim que ele adota a atitude corporal que corresponde ao azul."

Assim, um sensível que vai ser sentido apresenta ao meu corpo uma espécie de problema confuso. E preciso que eu encontre a atitude que vai lhe dar o meio de determinar-se e de tornar-se azul, é preciso que eu encontre a resposta a uma questão mal formulada. E todavia eu só o faço à sua solicitação, minha atitude nunca é suficiente para fazer-me ver verdadeiramente o azul ou tocar verdadeiramente uma superfície dura.

O sensível me restitui aquilo que lhe emprestei, mas é dele mesmo que eu o obtivera. Eu, que contemplo o azul do céu, não sou diante dele um sujeito acósmico, não o possuo em pensamento, não desdobro diante dele uma idéia de azul que me daria seu segredo, abandono-me a ele, enveredo-me nesse mistério, ele "se pensa em mim'', sou o próprio céu que se reúne, recolhe-se e põe- se a existir para si, minha consciência é obstruída por esse azul ilimitado. - Mas o céu não é espírito e não tem sentido algum dizer que ele existe para si? - Seguramente, o céu do geógrafo ou do astrônomo não existe para si. Mas do céu percebido ou sentido, subtendido por meu olhar que o percorre e o habita, meio de uma certa vibração vital que meu corpo adota, pode-se dizer que ele existe para si no sentido em que não é feito de partes exteriores, em que cada parte do conjunto é "sensível" àquilo que se passa em todas as outras e as "conhece dinamicamentc". E, quanto ao sujeito da sensação, ele não precisa ser um puro nada sem nenhum peso terrestre. Isso só seria necessário se ele devesse, assim como a consciência constituinte, estar presente em todas as partes ao mesmo tempo, coextensivo ao ser, e pensar a verdade do universo. Mas o espetáculo percebido não é ser puro. Tomado exatamente tal como o vejo, ele é um momento de minha história individual e, como a sensação é uma reconstituição, ela supõe em mim os sedimentos de uma constituição prévia, eu sou, enquanto sujeito que sente, inteiramente pleno de poderes naturais dos quais sou o primeiro a me espantar. Não sou portanto, segundo a expressão de Hegel, um "buraco no ser", mas um vazio, uma prega que se fez e que pode desfazer-se.

Insistamos nesse ponto. Como podemos escapar da alternativa entre o para si e o em si, como a consciência perceptiva pode ser obstruída por seu objeto, como podemos distinguir a consciência sensível da consciência intelectual? Toda percepção acontece em uma atmosfera de generalidade e se dá a nós como anônima. Não posso dizer que eu vejo o azul do céu no sentido em que digo que compreendo um livro ou, ainda, que decido consagrar minha vida às matemáticas.

Minha percepção, mesmo vista do interior, exprime uma situação dada: vejo o azul porque sou sensível às cores - ao contrário, os atos pessoais criam uma situação: sou matemático porque decidi sê-lo. De forma que, se eu quisesse traduzir exatamente a experiência perceptiva, deveria dizer que se percebe em mim e não que eu percebo. Toda sensação comporta um germe de sonho ou de despersonalização, como nós o experimentamos por essa espécie de estupor em que ela nos coloca quando vivemos verdadeiramente em seu plano.

Sem dúvida, o conhecimento me ensina que a sensação não aconteceria sem uma adaptação de meu corpo, por exemplo que não haveria contato determinado sem um movimento de minha mão. Mas essa atividade se desenrola na periferia de meu ser, não tenho mais consciência de ser o verdadeiro sujeito de minha sensação do que de meu nascimento ou de minha morte. Nem meu nascimento nem minha morte podem aparecer-me como experiências minhas, já que, se eu os pensasse assim, eu me suporia preexistente ou sobrevivente a mim mesmo para poder experimentá-los, e portanto não pensaria seriamente meu nascimento ou minha morte. Portanto, só posso apreender-me como "já nascido" e "ainda vivo", apreender meu nascimento e minha morte como horizontes pré-pessoais: sei que se nasce e que se morre, mas não posso conhecer meu nascimento e minha morte. Cada sensação, sendo rigorosamente a primeira, a última e a única de sua espécie, é um nascimento e uma morte. O sujeito que tem a sua experiência começa e termina com ela, e, como ele não pode preceder-se nem sobreviver a si, a sensação necessariamente se manifesta a si mesma em um meio de generalidade, ela provém de aquém de mim mesmo, ela depende de uma sensibilidade que a precedeu e que sobreviverá a ela, assim como meu nascimento e minha morte pertencem a uma natalidade e a uma mortalidade anônimas.

Pela sensação, eu apreendo, à margem de minha vida pessoal e de meus atos próprios, uma vida de consciência dada da qual eles emergem, a vida de meus olhos, de minhas mãos, de meus ouvidos, que são tantos Eus naturais. Toda vez que experimento uma sensação, sinto que ela diz respeito não ao meu ser próprio, aquele do qual sou responsável e do qual decido, mas a um outro eu que já tomou partido pelo mundo, que já se abriu a alguns de seus aspectos e sincronizou-se a eles. Entre minha sensação e mim há sempre a espessura de um saber origindrio que impede minha experiência de ser clara para si mesma. Experimento a sensação como modalidade de uma existência geral, já consagrada a um mundo físico, e que crepita através de mim sem que eu seja seu autor.

A sensação só pode ser anônima porque é parcial. Aquele que vê e aquele que toca não sou exatamente eu mesmo, porque o mundo visível e o mundo tangível não são o mundo por inteiro. Quando vejo um objeto, sinto sempre que ainda existe ser para além daquilo que atualmente vejo, não apenas ser visível mas ainda ser tangível ou apreensível pela audição, e não apenas ser sensível mas ainda uma profundidade do objeto que nenhuma antecipação sensorial esgotará.

Correlativamente, não estou por inteiro nessas operações, elas permanecem marginais, produzem-se adiante de mim, o eu que vê ou o eu que ouve são de alguma maneira um eu especializado, familiares a um único setor do ser, e é justamente a esse preço que o olhar e a mão são capazes de adivinhar o movimento que vai tornar a percepção precisa e podem dar provas desta presciência que lhes dá a aparência do automatismo.

Podemos resumir essas duas idéias dizendo que toda sensação pertence a um certo campo. Dizer que tenho um campo visual é dizer que, por posição, tenho acesso e abertura a um sistema de seres, os seres visuais, que eles estão à disposição de meu olhar em virtude de uma espécie de contrato primordial e por um dom da natureza, sem nenhum esforço de minha parte; é dizer portanto que a visão é pré-pessoal; e é dizer ao mesmo tempo que ela é sempre limitada, que existe sempre em torno de minha visão atual um horizonte de coisas não-vistas ou mesmo não-visíveis. A visão é umpensarnento sujeito a um certo campo e é isso que chamamos de um sentido. Quando digo que tenho sentidos e que eles me fazem ter acesso ao mundo, não sou vítima de uma confusão, não misturo o pensamento causal e a reflexão, apenas exprimo esta verdade que se impõe a uma reflexão integral: que sou capaz, por conaturalidade, de encontrar um sentido para certos aspectos do ser, sem que eu mesmo o tenha dado a eles por uma operação constituinte.

Com a distinção entre os sentidos e a intelecção, encontra-se justificada a distinção entre os diferentes sentidos. O intelectualismo não fala dos sentidos porque, para ele, sensações e sentidos só aparecem quando eu retorno ao ato concreto de conhecimento para analisá-lo. Então distingo nele uma matéria contingente e uma forma necessária, mas a matéria é apenas um momento ideal e não um elemento separável do ato total. Portanto, os sentidos não existem, mas apenas a consciência. Por exemplo, o intelectualismo recusa-se á colocar o famoso problema da contribuição dos sentidos na experiência do espaço, porque as qualidades sensíveis e os sentidos, enquanto materiais do conhecimento, não podem possuir como propriedade o espaço que é a forma da objetividade em geral e, em particular, o meio pelo qual uma consciência de qualidade se torna possível. Se uma sensação não fosse sensação de algo, ela seria um nada de sensação, e "coisas" no sentido mais geral da palavra, por exemplo qualidades definidas, só se esboçam na massa confusa das impressões se esta é posta em perspectiva e coordenada pelo espaço.

Assim, todos os sentidos devem ser espaciais se eles devem fazer- nos ter acesso a uma forma qualquer do ser, quer dizer, se eles são sentidos. E, pela mesma necessidade, é preciso que todos eles se abram ao mesmo espaço, sem o que os seres sensoriais com os quais eles nos fazem comunicar só existiriam para os sentidos dos quais eles dependem - assim como os fantasmas só se manifestam à noite -, faltar-lhes-ia a plenitude do ser e não poderíamos verdadeiramente ter consciência deles, quer dizer, pô-los como seres verdadeiros. A essa dedução, o empirismo tentaria em vão opor fatos.

Por exemplo, se se quer mostrar que o tato não é por si mesmo espacial, se se tenta encontrar nos cegos ou nos casos de cegueira psíquica uma experiência tátil pura e mostrar que ela não é articulada segundo o espaço, essas provas experimentais pressupõem aquilo que a elas caberia estabelecer. Com efeito, como saber se a cegueira e a cegueira psíquica se limitaram a subtrair, da experiência do doente, os dados visuais, e se elas também não atingiram a estrutura de sua experiência tátil?
 


 Della Scoltura Si, Della Pittura No - School of Guercino (Louvre Museum)



O empirismo toma a primeira hipótese por concedida, e é sob essa condição que o fato pode passar por crucial, mas exatamente através disso ele postula a separação dos sentidos, que justamente se trata de provar. Mais precisamente: se admito que o espaço pertence originariamente à visão e que dali ele passa ao tato e aos outros sentidos, como no adulto aparentemente existe uma percepção tátil do espaço, pelo menos devo admitir que os "dados táteis puros" são deslocados e recobertos por uma experiência de origem visual, que eles se integram a uma experiência total na qual são finalmente indiscerníveis. Mas então com que direito distinguir, nessa experiência adulta, uma contribuição "tátil"?

O pretenso "tátil puro" que tento reencontrar dirigindo-me aos cegos não seria um tipo de experiência muito particular, que não tem nada em comum com o funcionamento do tato integrado e não pode servir para analisar a experiência integral?

Não se pode decidir sobre a espacialidade dos sentidos pelo método indutivo e produzindo "fatos" - seja, por exemplo, um tato sem espaço no cego - já que esse fato precisa ser interpretado e justamente ele será considerado ou como um fato significativo que revela uma natureza própria do tato, ou como um fato acidental e que exprime as propriedades particulares do tato mórbido, segundo a idéia que se faz dos sentidos em geral e da relação entre eles na consciência total.

O problema depende da reflexão e não da experiência no sentido empirista da palavra, que é também aquele em que o tomam os cientistas quando sonham com uma objetividade absoluta. Portanto, podemos estabelecer a priori que todos os sentidos são espaciais, e a questão de saber qual é o sentido que nos dá o espaço deve ser considerada como ininteligível se refletimos no que é um sentido. Todavia, aqui são possíveis duas espécies de reflexão. Uma - trata-se da reflexão intelectualista - tematiza o objeto e a consciência e, para retomar uma expressão kantiana, ela os "conduz ao conceito". Agora o objeto se torna aquilo que é, por conseguinte aquilo que é para todos e para sempre (nem que seja a título de episódio efêmero, mas do qual seria verdade para sempre que ele existiu no tempo objetivo). A consciência, tematizada pela reflexão, éa existência para si. E, com o auxilio dessa idéia da consciência e dessa idéia do objeto, mostra-se facilmente que toda qualidade sensível só é plenamente objeto no contexto das relações de universo, e que a sensação só pode ser sob a condição de existir para um Eu central e único. Se se quisesse marcar uma parada no movimento reflexivo e falar, por exemplo, de uma consciência parcial ou de um objeto isolado, ter-se-ia uma consciência que em algum aspecto não se saberia a si mesma e que portanto não seria consciência, um objeto que não seria acessível em todas as partes e que nessa medida não seria objeto. Mas sempre se pode perguntar ao intelectualismo de onde ele extrai essa idéia ou essa essência da consciência e do objeto. Se o sujeito é puro para si, então "o Eu penso deve poder acompanhar todas as nossas representações". "Se um mundo deve poder ser pensado", então é preciso que a qualidade o contenha em germe. Mas, em primeiro lugar, de onde sabemos que existe o puro para si e de onde extraímos que o mundo deve poder ser pensado? Responder-se-á talvez que isso é a definição do sujeito e do mundo, e que se eles não forem compreendidos assim não se saberá mais do que se fala ao se falar deles. E com efeito, no plano da fala constituída, essa é certamente a significação do mundo e do sujeito. Mas de onde as próprias falas obtêm seu sentido?

A reflexão radical é aquela que me reapreende enquanto estou prestes a formar e formular a idéia do sujeito e a do objeto, ela ilumina a fonte dessas duas idéias, ela é reflexão não apenas operante, mas ainda consciente de si mesma em sua operação. Talvez se responderá ainda que a análise reflexiva não apreende o sujeito e o objeto apenas "em idéia", que ela é uma experiência, que, ao refletir, eu me recoloco neste sujeito infinito que eujá era, e recoloco o objeto nas relações que já o subtendiam, e que enfim não convém perguntar de onde extraio essa idéia do sujeito e essa idéia do objeto, já que elas são a simples formulação das condições sem as quais não haveria nada para ninguém. Mas o Eu refletido difere do Eu irrefletido pelo menos no fato de que ele foi tematizado, e o que é dado não é a consciência nem o ser puro - como o próprio Kant o diz com profundidade, é a experiência; em outros termos, a comunicação de um sujeito finito com um ser opaco do qual ele emerge, mas no qual permanece engajado. E "a experiência pura e por assim dizer ainda muda que se trata de trazer à expressão pura de seu próprio sentido".

Temos a experiência de um mundo, não no sentido de um sistema de relações que determinam inteiramente cada acontecimento, mas no sentido de uma totalidade aberta cuja síntese não pode ser acabada. Temos a experiência de um Eu, não no sentido de uma subjetividade absoluta, mas indivisivelmente desfeito e refeito pelo curso do tempo. A unidade do sujeito ou do objeto não é uma unidade real, mas uma unidade presuntiva no horizonte da experiência; é preciso reencontrar, para aquém da idéia do sujeito e da idéia do objeto, o fato de minha subjetividade e o objeto no estado nascente, a camada primordial em que nascem tanto as idéias como as coisas.

Quando se trata da consciência, só posso formar sua noção reportando-me primeiramente a esta consciência que eu sou, e particularmente não devo em primeiro lugar definir os sentidos, mas retomar contato com a sensorialidade que vivo do interior.

Não somos obrigados a a priori investir o mundo das condições sem as quais ele não poderia ser pensado, pois, para poder ser pensado, em primeiro lugar ele deve não ser ignorado, deve existir para mim, quer dizer, ser dado, e a estética transcendental só se confundiria com a analítica transcendental se eu fosse um Deus que põe o mundo e não um homem que ali se encontra lançado e que, em todos os sentidos da palavra, "atém-se a ele". Portanto, não precisamos seguir Kant em sua dedução de um espaço único. O espaço único é a condição sem a qual não se pode pensar a plenitude da objetividade, e é verdade que, se tentamos tematizar vários espaços, eles se reduzem à unidade, cada um deles encontrando-se em uma certa relação de posição com os outros e, portanto, sendo uma e a mesma coisa que eles. Mas sabemos se a objetividade plena pode ser pensada? Se todas as perspectivas são compossíveis? Se de algum lugar elas podem ser tematizadas todas em conjunto? Sabemos se a experiência tátil e a experiência visual podem reunir-se rigorosamente sem uma experiência intersensorial? Se minha experiência e aquela do outro podem ser ligadas em um sistema único da experiência intersubjetiva? Existem talvez, seja na experiência sensorial, seja em cada consciência, "fantasmas" que nenhuma racionalidade pode reduzir. Toda a Dedução Transcendental está sustentada na afirmação de um sistema integral da verdade. E justamente às fontes dessa afirmação que é preciso remontar, se se quer refletir.

Nesse sentido, pode-se dizer, com HusserPt, que em intenção Hume foi mais longe do que ninguém na reflexão radical, já que verdadeiramente ele quis reconduzir-nos aos fenômenos dos quais temos a experiência, para aquém de toda ideologia, mesmo se por outro lado ele mutilou e dissociou essa experiência. Em particular, a idéia de um espaço único e a de um tempo único, estando apoiadas naquela de uma adição do ser da qual justamente Kant fez a crítica na Dialética Transcendental, deve ser posta entre parênteses e produzir sua genealogia a partir de nossa experiência efetiva. Essa nova concepção da reflexão, que é a concepção fenomenológica, significa em outros termos dar uma nova definição do apriori. Kantjá mostrou que o apriori não é cognoscível antes da experiência, quer dizer, fora de nosso horizonte de facticidade, e que não se pode tratar de distinguir dois elementos reais do conhecimento, dos quais um seria a priori e o outro a posteriori.

Se o a priori conserva em sua filosofia o caráter daquilo que deve ser, por oposição àquilo que existe de fato e como determinação antropológica, é apenas na medida em que ele não seguiu até o fim seu programa, que era o de definir nossos poderes de conhecimento por nossa condição de fato, e que devia obrigá-lo a recolocar todo ser concebível sobre o fundo deste mundo-aqui. A partir do momento em que a experiência - quer dizer, a abertura ao nosso mundo de fato - é reconhecida como o começo do conhecimento, não há mais nenhum meio de distinguir um plano das verdades a priori e um plano das verdades de fato, aquilo que o mundo deve ser e aquilo que efetivamente ele é. A unidade dos sentidos, que passava por uma verdade a priori, é apenas a expressão formal de uma contingência fundamental: o fato de que somos no mundo; a diversidade dos sentidos, que passava por um dado a posteriori, compreendida aí a forma concreta que ela assume em um sujeito humano, aparece como necessária a este mundo-aqui, quer dizer, ao único mundo que possamos pensar com conseqüência; ela se torna então uma verdade a priori. Toda sensação é espacial, nós aderimos a essa tese não porque a qualidade enquanto objeto só pode ser pensada no espaço, mas porque, enquanto contato primordial com o ser, enquanto retomada, pelo sujeito que sente, de uma forma de existência indicada pelo sensível, enquanto coexistência entre aquele que sente e o sensível, ela própria é constitutiva de um meio de experiência, quer dizer, de um espaço.

Dizemos a priori que nenhuma sensação é pontual, que toda sensorialidade supõe um certo campo, logo, coexistências, e concluímos daí, contra Lachelier, que o cego tem a experiência de um espaço. Mas essas verdades a priori são apenas a explicitação de um fato: o fato da experiência sensorial como retomada de uma forma de existência, e essa retomada implica também que a cada instante eu possa fazer-me quase inteiro tato ou visão, e que até mesmo eu nunca possa ver ou tocar perca algo de sua disponibilidade.
 

 Study of the Blind - Antoine Coypel

 

 
Queira o bem, plante o bem e o resto vem...
 

Online Sininho

 

Assim, a unidade e a diversidade dos sentidos são verdades de mesmo estatuto. O a priori é o fato compreendido, explicitado e seguido em todas as conseqüências de sua lógica tácita, e o a posteriori é o fato isolado e implícito.

Seria contraditório dizer que o tato é sem espacialidade, e é a priori impossível tocar sem tocar no espaço, já que nossa experiência é a experiência de um mundo. Mas esta inserção da perspectiva tátil em um ser universal não exprime nenhuma necessidade exterior ao tato, ela se produz espontaneamente na própria experiência tátil, segundo seu modo próprio. A sensação, tal como a experiência a entrega a nós, não é mais uma matéria indiferente e um momento abstrato, mas uma de nossas superfícies de contato com o ser, uma estrutura de consciência, e, em lugar de um espaço único, condição universal de todas as qualidades, nós temos com cada uma delas uma maneira particular de ser no espaço e, de alguma maneira, de fazer espaço. Não é nem contraditório nem impossível que cada sentido constitua um pequeno mundo no interior do grande, e é até mesmo em razão de sua particularidade que ele é necessário ao todo e se abre a este.

Em suma, uma vez apagadas as distinções entre o a priori e o empírico, entre a forma e o conteúdo, os espaços senso- riais tornam-se momentos concretos de uma configuração global que é o espaço único, e o poder de ir a ele não se separa do poder de retirar-se dele na separação de um sentido. Na sala de concerto, quando reabro os olhos, o espaço visível me parece acanhado em relação a este outro espaço em que onde havia pouco a música se desdobrava, e, mesmo se conservo os olhos abertos enquanto se toca a peça, parece-me que a música não está verdadeiramente contida neste espaço preciso e mesquinho. Através do espaço visível, ela insinua uma nova dimensão em que rebenta, assim como, nos alucinados, o espaço claro das coisas percebidas se redobra misteriosamente  - sem que minha consciência em alguma medida se obstrua de um "espaço negro" em que outras presenças são possíveis. Assim como para mim a perspectiva do outro sobre o mundo, o domínio espacial de cada sentido é, para os outros sentidos, um incognoscível absoluto, e limita na mesma proporção a espacialidade deles. Essas descrições, que para uma filosofia criticista só oferecem curiosidades empíricas e não afetam as certezas a priori, readquirem para nós uma importância filosófica porque a unidade do espaço só pode ser encontrada na engrenagem dos domínios sensoriais uns nos outros. E isso que permanece verdadeiro nas famosas descrições empiristas de uma percepção não-espacial.

A experiência dos cegos de nascença operados de catarata nunca provou e nunca poderia provar que para eles o espaço começa com a visão. Mas o doente não deixa de maravilhar-se com este espaço visual ao qual acaba de ter acesso e em relação ao qual a experiência tátil lhe parece tão pobre que ele confessaria de bom grado jamais ter tido a experiência do espaço antes da operação'°. O espanto do doente, suas hesitações no novo mundo visual em que ele entra mostram que o tato não é espacial como a visão.

''Após a operação", diz-se, "a forma tal como é dada pela visão é para os doentes algo de absolutamente novo que eles não relacionam à sua experiência tátil"; "o doente afirma que vê, mas não sabe aquilo que vê (...) Ele nunca reconhece como tal a sua mão, ele só fala de uma mancha branca em movimento". Para distinguir pela visão um círculo de um retângulo, é preciso que ele siga com os olhos a extremidade da figura, como o faria com a mão, e ele sempre tende a pegar os objetos que se apresentam ao seu olhar, O que concluir daqui? Que a experiência tátil não prepara para a percepção do espaço? Mas, se ela não fosse de maneira alguma espacial, o sujeito estenderia a mão em direção ao objeto que lhe mostrassem? Esse gesto supõe que o tato se abre a um meio pelo menos análogo àquele dos dados visuais. Os fatos mostram sobretudo que a visão não é nada sem um certo uso do olhar. Os doentes "primeiramente vêem as cores assim como nós sentimos um odor: ele nos banha, age sobre nós, sem todavia preencher uma determinada forma de uma determinada extensão".

Primeiramente, tudo está misturado e tudo parece em movimento. A segregação das superfícies coloridas, a apreensão correta do movimento só vêm mais tarde, quando o paciente compreendeu "o que é ver'', quer dizer, quando ele dirige e passeia seu olhar como um olhar, e não mais como uma mão. Isso prova que cada órgão dos sentidos interroga o objeto à sua maneira, que ele é o agente de um certo tipo de síntese, mas, a menos que por definição nominal se reserve a palavra espaço para designar a síntese visual, não se pode recusar ao tato a espacialidade no sentido de apreensão das coexistências. O próprio fato de que a verdadeira visão se prepara no curso de uma fase de transição e por uma espécie de toque com os olhos não seria compreensível se não houvesse um campo tátil quase espacial em que as primeiras percepções visuais pudessem inserir-se. A visão nunca se comunicaria diretamente com o tato, como o faz no adulto normal, se o tato, mesmo artificialmente isolado, não fosse organizado de maneira a tornar possíveis as coexistências. Longe de excluir a idéia de um espaço tátil, os fatos provam, ao contrário, que existe um espaço tão estritamente tátil que suas articulações em primeiro lugar não estão e até mesmo nunca estarão em uma relação de sinonímia com aquelas do espaço visual. A análises empiristas põem confusamente um problema verdadeiro. Por exemplo, que o tato só possa abarcar simultaneamente uma pequena extensão - aquela do corpo e de seus instrumentos -' este fato não concerne apenas à apresentação do espaço tátil, ele modifica seu sentido.

Para a inteligência - ou, pelo menos, para uma certa inteligência que é aquela da física clássica -, a simultaneidade é a mesma, quer ela ocorra entre dois pontos contíguos ou entre dois pontos distantes, e em todo caso pode-se construir pouco a pouco, com simultaneidades a curta distância, uma simultaneidade a grande distância. Mas, para a experiência, a espessura de tempo que assim se introduz na operação modifica seu resultado, resulta daí um certo "movido" na simultaneidade dos pontos extremos e, nessa medida, para o cego operado a amplitude das perspectivas visuais será uma verdadeira revelação, porque ela proporcionará pela primeira vez a exibição da simultaneidade distante ela mesma. Os operados declaram que os objetos táteis não são verdadeiros todos espaciais, que aqui a apreensão do objeto é um simples "saber da relação recíproca das partes", que o círculo e o quadrado não são verdadeiramente percebidos pelo tato, mas reconhecidos a partir de certos "signos" - presença ou ausência de "pontas".

Entendamos que o campo tátil nunca tem a amplitude do campo visual, nunca o objeto tátil está presente por inteiro em cada uma de suas partes assim como o objeto visual, e em suma que tocar não é ver. Sem dúvida, entre o cego e o normal, a conversação se estabelece, e talvez seja impossível encontrar uma só palavra, mesmo no vocabulário das cores, à qual o cego não consiga dar um sentido pelo menos esquemático.

Um cego de doze anos define muito bem as dimensões da visão:

"Aqueles que vêem'', diz ele, "estão em relação comigo por um sentido desconhecido que à distância me envolve inteiramente, me segue, me atravessa e que, desde que me levanto até me deitar, me mantém, por assim dizer, sob sua dominação'' (mich gewissermassen beherrscht).

Mas para o cego essas indicações permanecem nocionais e problemáticas. Elas colocam uma questão à qual apenas a visão poderia responder. E é por isso que o cego operado acha o mundo diferente daquilo que ele esperava, assim como nós sempre achamos um homem diferente daquilo que sabíamos dele.

O mundo do cego e o do normal diferem não apenas pela quantidade dos materiais dos quais eles dispõem, mas ainda pela estrutura do conjunto. Um cego sabe exatamente, pelo tato, o que são galhos e folhas, um braço e os dedos da mão. Após a operação, ele se espanta por encontrar "tanta diferença" entre uma árvore e um corpo humano. É evidente que a visão não acrescentou apenas novos detalhes ao conhecimento da árvore. Trata-se de um modo de apresentação e de um tipo de síntese novos, que transfiguram o objeto. A estrutura iluminação/objeto iluminado, por exemplo, no domínio tátil só encontra analogias muito vagas. É por isso que um doente operado após dezoito anos de cegueira tenta tocar um raio de sol.


 Transfiguration or The Blind II - Egon Schiele, 1915

A significação total de nossa vida - da qual a significação nocional é sempre apenas um extrato - seria diferente se fôssemos privados da visão. Existe uma função geral de substituição e de troca que nos permite ter acesso à significação abstrata das experiências que não vivemos e, por exemplo, permite-nos falar daquilo que não vimos. Mas, assim como no organismo as funções de substituição nunca equivalem exatamente às funções lesadas e só dão a aparência da integridade, a inteligência só assegura uma comunicação aparente entre experiências diferentes, e a síntese do mundo visual e do mundo tátil no cego de nascença operado, a constituição de um mundo intersensorial, deve fazer-se no próprio terreno sensorial, a comunidade de significação entre as duas experiências não basta para assegurar sua solda em uma experiência única. Os sentidos são distintos uns dos outros e distintos da intelecção, já que cada um deles traz consigo uma estrutura de ser que nunca é exatamente transponível. Nós podemos reconhecê-lo porque rejeitamos o formalismo da consciência e fizemos do corpo o sujeito da percepção.

E podemos reconhecê-lo sem comprometer a unidade dos sentidos. Pois os sentidos se comunicam. A música não está no espaço visível, mas ela o mina, o investe, o desloca, e em breve esses ouvintes muito empertigados, que assumem o ar de juízes e trocam palavras e sorrisos, sem perceber que o chão se abala sob eles, estarão como uma tripulação sacudida na área de uma tempestade. Os dois espaços só se distinguem sobre o fundo de um mundo comum, e só podem entrar em rivalidade porque ambos têm a mesma pretensão ao ser total.

Eles se unem no momento mesmo em que se opõem. Se quero encerrar-me em um de meus sentidos e, por exemplo, me projeto inteiro em meus olhos e abandono-me ao azul do céu, em breve não tenho mais consciência de olhar e, no momento em que queria fazer-me inteiro visão, o céu deixa de ser uma "percepção visual" para tornar-se meu mundo do momento. A experiência sensorial é instável e é estranha à percepção natural que se faz com todo o nosso corpo ao mesmo tempo e abre-se a um mundo intersensorial. Assim como a experiência da qualidade sensível, a experiência dos "sentidos" separados só ocorre em uma atitude muito particular e não pode servir para a análise da consciência direta. Estou sentado em meu quarto e olho as folhas de papel branco dispostas em minha mesa, umas iluminadas através da janela, outras na penumbra. Se não analisar minha percepção e se me ativer ao espetáculo global, direi que todas as folhas de papel me aparecem igualmente brancas. Todavia, algumas delas estão na sombra da parede. Como elas não são menos brancas do que as outras? Decido olhar melhor. Fixo nelas o meu olhar, quer dizer, limito meu campo visual. Posso até mesmo observá-las através de uma caixa de fósforos que as separa do resto do campo, ou através de um "anteparo de redução" aberto de uma janela.

Quer eu empregue algum desses dispositivos ou me contente em observar a olho nu, mas na "atitude analítica", o aspecto das folhas muda: não se trata mais de papel branco recoberto por uma sombra, trata-se de uma substância cinza ou azulada, espessa e mal localizada. Se considero novamente o conjunto do espetáculo, observo que as folhas sombreadas não eram e jamais foram idênticas às folhas iluminadas, nem tampouco objetivamente diferentes delas. A brancura do papel sombreado não se deixa classificar com precisão na série negro-branco. Ela não era nenhuma qualidade definida, e fiz a qualidade manifestar-se fixando meus olhos em uma porção do campo visual: agora e apenas agora me encontrei em presença de um certo quale em que meu olhar se afunda. Ora, o que é fixar? Do lado do objeto, é separar a região fixada do resto do campo, é interromper a vida total do espetáculo, que atribuía a cada superfície visível uma coloração determinada, levando em conta a iluminação; do lado do sujeito, é substituir à visão global, na qual nosso olhar se presta a todo o espetáculo e se deixa invadir por este, uma observação, quer dizer, uma visão local que ele governa ao seu modo. A qualidade sensível, longe de ser coextensiva à percepção, é o produto particular de uma atitude de curiosidade ou de observação. Ela aparece quando, em lugar de abandonar todo o meu olhar no mundo, volto-me para este próprio olhar e pergunto-me o que rejo exatamente; ela não figura no comércio natural de minha visão com o mundo, ela é a resposta a uma certa questão de meu olhar, o resultado de uma visão secundária ou crítica que procura conhecer-se em sua particularidade, de uma "atenção ao visual puro" que exerço ou quando temo ter- me enganado, ou quando quero empreender um estudo científico da visão. Essa atitude faz o espetáculo desaparecer: as cores que vejo através do anteparo de redução, ou aquelas que o pintor obtém entrecerrando os olhos, não são mais coresobjetos - a cor das paredes ou a cor do papel -, mas superfícies coloridas não sem espessura, todas vagamente localizadas no mesmo plano fictício. Assim, existe uma atitude natural da visão em que conspiro com meu olhar e através dele me entrego ao espetáculo: agora as partes do campo estão ligadas em uma organização que as torna reconhecíveis e identificáveis. A qualidade, a sensorialjdade separada, produz-se quando rompo essa estruturação total de minha visão, quando deixo de aderir ao meu próprio olhar e, em lugar de viver a visão, interrogo-me sobre ela, quero testar minhas possibilidades desfaço o elo entre minha visão e o mundo, entre mim mesmo e minha visão, para surpreendê-la e descrevê-la. Nessa atitude, ao mesmo tempo em que o mundo se pulveriza em qualidades sensíveis, a unidade natural do sujeito perceptivo é rompida e chego a ignorar-me enquanto sujeito de um campo visual. Ora, assim como, no interior de cada sentido, é preciso reencontrar a unidade natural, faremos aparecer uma "camada originária" do sentir que é anterior à divisão dos sentidos. Conforme eu fixe um objeto ou deixe meus olhos divergirem, ou enfim me abandone por inteiro ao acontecimento, a mesma cor me aparece como cor superficial (OberJiáchenfarbe) - ela está em um lugar definido do espaço, estende-se sobre o objeto - ou então ela se torna cor atmosférica (Raumfarbe) e difusa em torno do objeto; ou então eu a sinto em meu olho como uma vibração de meu olhar; ou enfim ela comunica a todo o meu corpo uma mesma maneira de ser, ela me preenche e não merece mais o nome de cor. Da mesma maneira, há um som objetivo que ressoa fora de mim no instrumento, um som atmosférico que está entre o objeto e meu corpo, um som que vibra em mim "como se eu me tivesse tornado a flauta ou o pêndulo"; e enfim um último estágio em que o elemento sonoro desaparece e torna-se a experiência, aliás muito precisa, de uma modificação de todo o meu corpo. A experiência sensorial só dispõe de uma margem estreita: ou o som e a cor, por seu arranjo próprio, desenham um objeto, o cinzeiro, o violão, e esse objeto fala de uma só vez a todos os sentidos; ou então, na outra extremidade da experiência, o som e a cor são recebidos em meu corpo, e torna-se difícil limitar minha experiência a um único registro sensorial: espontaneamente, ela transborda para todos os outros. A experiência sensorial, no terceiro estágio que descrevíamos há pouco, só se especifica por um "acento" que indica antes a direção do som ou a da cor. Neste nível, a ambigüidade da experiência é tal que um ritmo auditivo faz imagens cinematográficas se fundirem e dá lugar a uma percepção de movimento, quando sem apoio auditivo a mesma sucessão de imagens seria muito lenta para provocar o movimento estroboscópico. Os sons modificam as imagens consecutivas das cores: um som mais intenso as intensifica, a interrupção do som as faz vacilar, um som baixo torna o azul mais escuro ou mais profundo. A hipótese de constância, que para cada estímulo atribui uma e apenas uma sensação, é tanto menos verificada quanto mais nos aproximamos da percepção natural. "E na medida em que a conduta é intelectual e imparcial (sachlicher) que a hipótese de constância se torna aceitável no que diz respeito à relação entre o estímulo e a resposta sensorial específica, e qúe o estímulo sonoro, por exemplo, limita-se à esfera específica, aqui a esfera auditiva.

A intoxicação pela mescalina, porque compromete a atitude imparcial e entrega o sujeito à sua vitalidade, deverá favorecer então as sinestesias. De fato, sob efeito de mescalina, um som de flauta causa uma cor azul forte, o ruído de um metrônomo se traduz na obscuridade por manchas cinzas, os intervalos espaciais da visão correspondem aos intervalos temporais dos sons, a grandeza da mancha cinza à intensidade do som, sua altura no espaço à altura do som. Um paciente sob efeito de mescalina encontra um pedaço de ferro, bate no batente da janela e "Eis a magia", diz ele: as árvores ficam mais verdes. O latido de um cão atrai a iluminação de uma maneira indescritível, e repercute no pé direito.

Tudo se passa como se víssemos "caírem algumas vezes as barreiras estabelecidas entre os sentidos no curso da evolução". Na perspectiva do mundo objetivo, com suas qualidades opacas, e do corpo objetivo, com seus órgãos separados, o fenômeno das sinestesias é paradoxal. Procura-se então explicá-lo sem tocar no conceito de sensação; será preciso, por exemplo, supor que as excitações ordinariamente circunscritas a uma região do cérebro - zona ótica ou zona auditiva - tornam-se capazes de intervir fora desses limites, e que assim à qualidade específica acha-se associada uma qualidade não-específica.

Quer tenha ou não ao seu favor argumentos de fisiologia cerebral, essa explicação não dá conta da experiência sinestésica, que se torna assim uma nova ocasião de colocar em questão o conceito de sensação e o pensamento objetivo. Pois o sujeito não nos diz apenas que ele tem ao mesmo tempo um som e uma cor: é o próprio som que ele vê no lugar em que se formam as cores. Essa fórmula é literalmente desprovida de sentido se se define a visão pelo quale visual, o som pelo quale sonoro. Mas cabe a nós construir nossas definições de maneira a encontrar-lhe um, já que a visão dos sons ou a audição das cores existem como fenômenos. E eles não são nem mesmo fenômenos excepcionais. A percepção sinestésica é a regra, e, se não percebemos isso, é porque o saber científico desloca a experiência e porque desaprendemos a ver, a ouvir e, em geral, a sentir, para deduzir de nossa organização corporal e do mundo tal como o concebe o físico aquilo que devemos ver, ouvir e sentir.

A visão, diz-se, só pode apresentar-nos cores ou luzes, e com elas formas, que são os contornos das cores, e movimentos, que são as mudanças de posição das manchas de cor. Mas como situar na escala das cores a transparência ou as cores "turvas''? Na realidade, cada cor, no que ela tem de mais íntimo, não é senão a estrutura interior da coisa manifestada no exterior.

O brilho do ouro apresenta-nos sensivelmente sua composição homogênea, a cor embaçada da madeira apresenta-nos a sua composição heterogênea. Os sentidos comunicam-se entre si e abrem-se à estrutura da coisa. Vemos a rigidez e a fragilidade do vidro e, quando ele se quebra com um som cristalino, este som é trazido pelo vidro visível. Vemos a elasticidade do aço, a maleabilidade do aço incandescente, a dureza da lâmina em uma plaina, a moleza das aparas.

A forma dos objetos não é seu contorno geométrico: ela tem uma certa relação com sua natureza própria e fala a todos os nossos sentidos ao mesmo tempo em que fala à visão. A forma de uma prega em um tecido de linho ou de algodão nos faz ver a flexibilidade ou a secura da fibra, a frieza ou o calor do tecido. Enfim, o movimento dos objetos visíveis não é o simples deslocamento das manchas de cor que lhes correspondem no campo visual. No movimento do galho que um pássaro acaba de abandonar, lemos sua flexibilidade ou sua elasticidade, e é assim que um galho de macieira e um galho de bétula imediatamente se distinguem. Vemos o peso de um bloco de ferro que se afunda na areia, a fluidez da água, a viscosidade do xarope. Da mesma maneira, no ruído de um automóvel ouço a dureza e a desigualdade dos paralelepípedos, e com razão fala-se em um ruído "frouxo", "embaçado" ou "seco". Se se pode duvidar de que a audição nos dê verdadeiras "coisas", pelo menos é certo que ela nos oferece, para além dos sons no espaço, algo que "rumoreja" e, através disso, ela se comunica com os outros sentidos. Enfim, se curvo, com os olhos fechados, uma haste de aço e um galho de tfiia, percebo entre minhas mãos a textura mais secreta do metal e da madeira. Portanto, se considerados como qualidades incomparáveis, os "dados dos diferentes sentidos" dependem de tantos mundos separados, cada um deles, em sua essência particular, sendo uma maneira de modular a coisa, todos eles se comunicam através de seu núcleo significativo.

E preciso apenas precisar a natureza da significação sensível, sem o que voltaríamos à análise intelectualista que mais acima descartamos. E a mesma mesa que toco e que vejo. Mas seria preciso acrescentar, como já se fez: é a mesma sonata que eu ouço e que Helen Keller toca, é o mesmo homem que eu vejo e que um pintor cego pinta?

Pouco a pouco não haveria mais nenhuma diferença entre a síntese perceptiva e a síntese intelectual. A unidade dos sentidos seria da mesma ordem que a unidade dos objetos da ciência. Quando ao mesmo tempo eu toco e observo um objeto, o objeto único seria a razão comum dessas duas aparências, assim como Vênus é a razão comum da Estrela da Manhã e da Estrela da Tarde, e a percepção seria uma ciência principiante. Ora, se a percepção reúne nossas experiências sensoriais em um mundo único, não é como a coligação científica junta objetos ou fenômenos, é como a visão binocular apreende um único objeto.

Descrevamos de perto esta "síntese". Quando meu olhar está fixado no infinito, tenho uma imagem dupla dos objetos próximos. Quando por sua vez eu os fixo, vejo as duas imagens se reaproximarem juntas daquilo que vai ser o objeto único, e desaparecerem nele. Aqui, não se deve dizer que a síntese consiste em pensá-las em conjunto como imagens de um único objeto; se se tratasse de um ato espiritual ou de uma apercepção, ele deveria produzir-se assim que observo a identidade das duas imagens, quando de fato a unidade do objeto se faz aguardar por muito mais tempo: até o momento em que a fixação as escamoteia. O objeto único não é uma certa maneira de pensar as duas imagens, já que elas deixam de ser dadas no momento em que ele aparece. A "fusão das imagens" foi obtida então por algum dispositivo inato ao sistema nervoso, e nós queremos dizer que, no final das contas, se não na periferia, pelo menos no centro nós temos apenas uma única excitação mediada pelos dois olhos? Mas a simples existência de um centro visual não pode explicar o objeto único, já que por vezes a diplopia se produz, assim como, aliás, a simples existência de duas retinas não pode explicar a diplopia, já que ela não é constante.

Se pudermos compreender a diplopia tanto quanto o objeto único da visão normal, não será pela disposição anatômica do aparelho visual, mas por seu funcionamento e pelo uso que dele faz o sujeito psicofísico. Diremos então que a diplopia se produz porque nossos olhos não convergem para o objeto e porque em nossas duas retinas se formam imagens não-simétricas? Diremos que as duas imagens se fundem porque a fixação as reconduz a pontos homólogos das duas retinas? Mas a divergência e a convergência dos olhos são a causa ou o efeito da diplopia e da visão normal? Nos cegos de nascença operados da catarata não se poderia dizer, no período que se segue à operação, se é a incoordenação dos olhos que impede a visão ou se é a confusão do campo visual que favorece a incoordenação - se eles não vêem por não fixar ou se não fixam por não ter algo para ver. Quando olho para o infinito e, por exemplo, um de meus dedos situado perto de meus olhos projeta sua imagem em pontos não-simétricos de minhas retinas, a disposição das imagens nas retinas não pode ser a causa do movimento de fixação que porá fim à diplopia. Pois, como se fez observar, o desaparecimento das imagens não existe em si. Meu dedo forma sua imagem em uma certa área de minha retina esquerda e em uma área da retina direita que não é simétrica à primeira. Mas a área simétrica da retina direita é preenchida, ela também, de excitações visuais; a repartição dos estímulos nas duas retinas só é "dissimétrica" em relação a um sujeito que compara as duas constelações e as identifica. Nas próprias retinas, consideradas como objetos, só existem dois conjuntos de estímulos incomparáveis. Responder-se-á talvez que, a menos que haja um movimento de fixação, esses dois conjuntos não podem sobrepor-se, nem dar lugar à visão de coisa alguma, e que nesse sentido sua presença, por si só, cria um estado de desequilíbrio. Mas isso é justamente admitir aquilo que procuramos mostrar: que a visão de um objeto único não é um simples resultado da fixação, que ela é antecipada no próprio ato de fixação ou que, como o disseram, a fixação do olhar é uma "atividade prospectiva". Para que meu olhar se reporte aos objetos próximos e neles concentre os olhos, é preciso que ele sinta a diplopia como um desequilíbrio ou como uma visão imperfeita, e que ele se oriente para o objeto único corno para a resolução dessa tensão e a conclusão da visão. "E preciso 'olhar' para ver." Portanto, a unidade do objeto na visão binocular não resulta de algum processo em terceira pessoa, que finalmente produziria uma imagem única fundindo as duas imagens monoculares. Quando se passa da diplopia à visão normal, o objeto único substitui as duas imagens e visivelmente não é sua simples sobreposição: ele é de outra ordem que elas, incomparavelmente mais sólido do que elas. Na visão binocular, as duas imagens da diplopia não são amalgamadas em uma só, e a unidade do objeto é intencional.

Mas - eis-nos no ponto a que queríamos chegar - ela não é por isso uma unidade nocional. Passa-se da diplopia ao objeto único não por uma inspeção do espfrito, mas quando, os dois olhos deixam de funcionar cada um por sua conta e são utilizados por um olhar único como um só órgão. Não é o sujeito epistemológico que efetua a síntese, é o corpo, quando sai de sua dispersão, se ordena, se dirige por todos os meios para um termo único de seu movimento, e quando, pelo fenômeno da sinergia, uma intenção única se concebe nele. Nós só retiramos a síntese do corpo objetivo para atribuí-la ao corpo fenomenal, quer dizer, ao corpo enquanto ele projeta em torno de si um certo ''meio'', enquanto suas "partes'' se conhecem dinamicamente umas às outras, e seus receptores se dispõem de maneira a tornar possível, por sua sinergia, a percepção do objeto.

Dizendo que essa intencionalidade não é um pensamento, queremos dizer que ela não se efetua na transparência de uma consciência, e que ela toma por adquirido todo o saber latente que meu corpo tem de si mesmo. Apoiada na unidade pré-lógica do esquema corporal, a síntese perceptiva não possui o segredo do objeto, assim como o do corpo próprio, e é por isso que o objeto percebido se oferece sempre como transcendente, é por isso que a síntese parece fazer-se no próprio objeto, no mundo, e não neste ponto metafísico que é o sujeito pensante, é nisso que a síntese perceptiva se distingue da síntese intelectual. Quando passo da diplopia à visão normal, não tenho consciência apenas de ver pelos dois olhos o mesmo objeto, tenho consciência de progredir para o objeto ele mesmo e de ter enfim a sua presença carnal. As imagens monoculares erravam vagamente diante das coisas, elas não tinham lugar no mundo, e repentinamente elas se retiram para um certo lugar do mundo e ali são tragadas, assim como os fantasmas, à luz do dia, voltam para a fissura da terra de onde tinham saído. O objeto binocular absorve as imagens monoculares, e é nele que se faz a síntese, é em sua clareza que elas enfim se reconhecem como aparências desse objeto. A série de minhas experiências apresenta-se como concordante e a síntese tem lugar não enquanto elas exprimem todas um certo invariante e na identidade do objeto, mas enquanto elas são todas recolhidas pela última delas e na ipseidade da coisa. Bem entendido, a ipseidade nunca é atingida: cada aspecto da coisa que cai sob nossa percepção é novamente apenas um convite a perceber para além e uma parada momentânea no processo perceptivo. Se a coisa mesma fosse atingida, doravante ela estaria exposta diante de nós e sem mistério. Ela deixaria de existir como coisa no momento mesmo em que acreditaríamos possuí-la. Portanto, o que faz a "realidade" da coisa é justamente aquilo que a subtrai à nossa posse. A ipseidade da coisa, sua presença irrecusável, e a ausência perpétua na qual ela se entrincheira são dois aspectos inseparáveis da transcendência.

O intelectualismo ignora um e outro, e, se queremos dar conta da coisa enquanto termo transcendente de uma série aberta de experiências, é preciso atribuir ao sujeito da percepção a própria unidade aberta e indefinida do esquema corporal. Eis o que nos ensina a síntese da visão binocular. Apliquemo-lo ao problema da unidade dos sentidos. Ela não se compreenderá por sua subsunção a uma consciência originária, mas por sua integração nunca acabada em um único organismo cognoscente. O objeto intersensorial está para o objeto visual assim como o objeto visual está para as imagens monoculares da diplopia, e na percepção os sentidos se comunicam assim como na visão os dois olhos colaboram. A visão dos sons ou a audição das cores se realizam como se realiza a unidade do olhar através dos dois olhos: enquanto meu corpo é não uma soma de órgãos justapostos, mas um sistema sinérgico do qual todas as funções são retomadas e ligadas no movimento geral do ser no mundo, enquanto ele é a figura imobilizada da existência. Há um sentido em dizer que vejo sons ou que ouçocores, se a visão ou a audição não são a simples posse de um quale opaco, mas a experiência de uma modalidade da existência, a sincronização de meu corpo a ela, e o problema das sinestesias recebe um começo de solução se a experiência da qualidade é a de um certo modo de movimento ou a de uma conduta.

Quando digo que vejo um som quero dizer que, à vibração do som, faço eco através de todo o meu ser sensorial e, em particular, através desse setor de mim mesmo que é capaz das cores. O movimento, compreendido não como movimento objetivo e deslocamento no espaço, mas como projeto de movimento ou "movimento virtual", é o fundamento da unidade dos sentidos. E bastante conhecido que o cinema falado não apenas acrescenta ao espetáculo um acompanhamento sonoro, ele modifica o teor do próprio espetáculo. Quando assisto à projeção de um filme dublado em francês, não somente constato o desacordo entre a fala e a imagem, mas repentinamente me parece que ali se diz outra coisa, e, enquanto a sala e meus ouvidos são preenchidos pelo texto dublado, para mim ele não tem existência nem mesmo auditiva, e só tenho ouvidos para esta outra fala sem ruídos que vem da tela. Quando subitamente uma panne deixa sem voz o personagem, que continua a gesticular na tela, não é apenas o sentido de seu discurso que de repente me escapa: o espetáculo também é alterado, O rosto, há pouco animado, se embota e se imobiliza como o de um homem embaraçado, e a interrupção do som invade a tela sob a forma de uma espécie de estupor. Junto ao espectador, os gestos e as falas não são subsumidos a uma significação ideal, mas a fala retoma o gesto, e o gesto retoma a fala, eles se comunicam através de meu corpo, assim como os aspectos sensoriais de meu corpo, eles são imediatamente simbólicos um do outro, porque meu corpo é justamente um sistema acabado de equivalências e de transposições intersensoriais. Os sentidos traduzem-se uns nos outros sem precisar de um intérprete, compreendem-se uns aos outros sem precisar passar pela idéia. Essas observações permitem dar todo o seu sentido à frase de Herder: "O homem é um sensorium comum perpétuo, que é tocado ora de um lado e ora do outro." Com a noção de esquema corporal, não é apenas a unidade do corpo que é descrita de uma maneira nova, é também, através dela, a unidade dos sentidos e a unidade do objeto. Meu corpo é o lugar, ou antes a própria atualidade do fenômeno de expressão (Ausdruck), nele a experiência visual e a experiência auditiva, por exemplo, são pregnantes uma da outra, e seu valor expressivo funda a unidade antepredicativa do mundo percebido e, através dela, a expressão verbal (Darstellung) e a significação intelectual (Bedeutung). Meu corpo é a textura comum de todos os objetos e é, pelo menos em relação ao mundo percebido, o instrumento geral de minha "compreensão''.

E ele que dá um sentido não apenas ao objeto natural, mas ainda a objetos culturais como as palavras. Se se apresenta uma palavra a um sujeito durante um tempo muito curto para que ele possa decifrá-la, a palavra "quente", por exemplo, induz uma espécie de experiência do calor que forma em torno dele como que um halo significativo. A palavra "duro" suscita uma espécie de rigidez das costas e do pescoço, e é secundariamente que ela se projeta no campo visual ou auditivo e adquire sua figura de signo ou de vocábulo. Antes de ser o índice de um conceito, primeiramente ela é um acontecimento que se apossa de meu corpo, e suas ações sobre meu corpo circunscrevem a zona de significação à qual ela se reporta. Um sujeito declara que, à apresentação da palavra ''úmido" (Jeuchi), ele experimenta, além de um sentimento de umidade e de frio, todo um remanejamento do esquema corporal, como se o interior do corpo viesse para a periferia, e como se a realidade do corpo, reunida até então nos braços e nas pernas, procurasse recentrar-se. Agora a palavra não é distinta da atitude que ela induz, e é apenas quando sua presença se prolonga que ela aparece como imagem exterior e sua significação como pensamento. As palavras têm uma fisionomia porque nós temos em relação a elas, assim como em relação a cada pessoa, uma certa conduta que aparece de um só golpe a partir do momento em que elas são dadas. "Tento apreender a palavra rot (vermelho) em sua expressão viva; mas primeiramente ela é para mim apenas periférica, é apenas um signo com o saber de sua significação. Ela própria não é vermelha. Mas repentinamente observo que a palavra abre uma passagem em meu corpo. E o sentimento - difícil de descrever - de uma espécie de plenitude atordoante que invade meu corpo e que ao mesmo tempo dá à minha cavidade bucal uma forma esférica. E, precisamente nesse momento, observo que a palavra no papel recebe seu valor expressivo, ela vem ao meu encontro em um halo vermelho escuro, enquanto a letra o apresenta intuitivamente essa cavidade esférica que antes senti em minha boca. Essa conduta da palavra permite compreender, particularmente, que a palavra seja indissoluvelmente algo que se diz, que se ouve e que se vê. "A palavra lida não é uma estrutura geométrica em um segmento de espaço visual, ela é a apresentação de um comportamento e de um movimento lingüístico em sua plenitude dinâmica." Quer se trate de perceber palavras ou, mais geralmente, objetos, "há uma certa atitude corporal, um modo específico de tensão dinâmica que é necessária para estruturar a imagem; o homem enquanto totalidade dinâmica deve enformar-se a si mesmo para traçar uma figura em seu campo visual enquanto parte do organismo psicofísico". Em suma, meu corpo não é apenas um objeto entre todos os outros objetos, um complexo de qualidades entre outros, ele é um objeto sensível a todos os outros, que ressoa para todos os SOnS, vibra para todas as cores, e que fornece às palavras a sua significação primordial através da maneira pela qual ele as acolhe. Não se trata aqui de reduzir a significação da palavra "quente" a sensações de calor, segundo as fórmulas empiristas. Pois o calor que sinto lendo a palavra "quente" não é um calor efetivo. Ele é apenas o meu corpo que se prepara para o calor e que desenha, por assim dizer, a sua forma. Da mesma maneira, quando nomeiam diante de mim uma parte de meu corpo, ou quando eu represento para mim, sinto no ponto correspondente uma quase-sensação de contato, que é apenas a emergência dessa parte de meu corpo no esquema corporal total. Portanto, nós não reduzimos a significação da palavra e nem mesmo a significação do percebido a uma soma de "sensações corporais", mas dizemos que o corpo, enquanto tem "condutas", é este estranho objeto que utiliza suas próprias partes como simbólica geral do mundo, e através do qual, por conseguinte, podemos "freqüentar" este mundo, "compreendê-lo" e encontrar uma significação para ele.

Tudo isso, dir-se-á, tem sem dúvida algum valor como descrição da aparência. Mas o que nos importa se, no final das contas, essas descrições não querem dizer nada que se possa pensar e se a reflexão os convence do não-senso? No plano da opinião, o corpo próprio é ao mesmo tempo objeto constituído e constituinte em relação aos outros objetos. Mas, se se quer saber de que se fala, é preciso escolher e, em última análise, recolocá-lo do lado do objeto constituído. Com efeito, de duas coisas uma: ou eu me considero no meio do mundo, inserido nele por meu corpo, que se deixa investir por relações de causalidade, e então ''os sentidos'' e "o corpo" são aparelhos materiais e não conhecem absolutamente nada; o objeto forma uma imagem nas retinas, e no centro ótico a imagem retiniana se desdobra em uma outra imagem, mas ali só existem coisas para ver e ninguém que veja, somos indefinidamente reenviados de uma etapa corporal à outra, supomos no homem um "pequeno homem" e neste um outro, sem nunca chegar à visão. Ou então quero verdadeiramente compreender como existe visão, mas então é preciso que eu saia do constituído, daquilo que é em si, e apreenda por reflexão um ser para quem o objeto possa existir. Ora, para que o objeto possa existir em relação ao sujeito, não basta que este "sujeito" o envolva com o olhar ou o apreenda assim como minha mão apreende este pedaço de madeira, é preciso ainda que ele saiba que o apreende ou o olha, que ele se conheça apreendendo ou olhando, que seu ato seja inteiramente dado a si mesmo e que, enfim, este sujeito seja somente aquilo que ele tem consciência de ser, sem o que nós teríamos uma apreensão do objeto ou um olhar o objeto para um terceiro testemunho, mas o pretenso sujeito, por não ter consciência de si, se dispersaria em seu ato e não teria consciência de nada. Para que haja visão do objeto ou percepção tátil do objeto, faltará sempre aos sentidos essa dimensão de ausência, essa irrealidade pela qual o sujeito pode ser saber de si e o objeto pode existir para ele. A consciência do ligado pressupõe a consciência do ligante e de seu ato de ligação, a consciência de objeto pressupõe a consciência de si, ou antes elas são sinônimas. Portanto, se existe consciência de algo é porque o sujeito não é absolutamente nada, e as "sensações", a "matéria" do conhecimento, não são momentos ou habitantes da consciência, elas estão do lado do constituído. O que podem nossas descrições contra essas evidências, e como elas escapariam a essa alternativa? Retornemos à experiência perceptiva. Percebo esta mesa na qual escrevo. Isso significa, entre outras coisas, que meu ato de percepção me ocupa, e me ocupa o suficiente para que eu não possa, enquanto efetivamente percebo a mesa, perceber-me percebendo-a. Quando quero fazê-lo, deixo, por assim dizer, de mergulhar na mesa através de meu olhar, volto-me para mim que percebo, e me dou conta então de que minha percepção precisou atravessar certas aparências subjetivas, interpretar certas "sensações" minhas, enfim ela aparece na perspectiva de minha história individual. E a partir do ligado que tenho, secundariamente, consciência de uma atividade de ligação, quando, assumindo a atitude analítica, decomponho a percepção em qualidades e em sensações e quando, para encontrar a partir delas o objeto no qual primeiramente eu estava jogado, sou obrigado a supor um ato de síntese que não é senão a contrapartida de minha análise. Meu ato de percepção, considerado na sua ingenuidade, não efetua ele mesmo essa síntese, ele se beneficia de um trabalho já feito, de uma síntese geral constituída de uma vez por todas, é isso que exprimo ao dizer que percebo com meu corpo ou com meus sentidos, meu corpo, meus sentidos, sendo justamente este saber habitual do mundo, essa ciência implícita ou sedimentada. Se minha consciência constituísse atualmente o mundo que percebe, dela a ele não haveria nenhuma distância e, entre eles, nenhuma defasagem possível; ela o penetraria até em suas articulações mais secretas, a intencionalidade nos transportaria ao interior do objeto, e com isso o percebido não teria a espessura de um presente, a consciência não se perderia, não se enviscaria nele. Ao contrário, temos consciência de um objeto inesgotável e estamos afundados nele como em areia movediça porque, entre ele e nós, existe este saber latente que nosso olhar utiliza, do qual apenas presumimos que seu desenvolvimento racional seja possível, e que permanece sempre para aquém de nossa percepção. Como dizíamos, se toda percepção tem algo de anônimo, é porque ela retoma um saber que não põe em questão. Aquele que percebe não está desdobrado diante de si como uma consciência deve estar, ele tem uma espessura histórica, retoma uma tradição perceptiva e é confrontado com um presente. Na percepção, nós não pensamos o objeto e não nos pensamos pensando-o, nós somos para o objeto e confundimo-nos com esse corpo que sabe mais do que nós sobre o mundo, sobre os motivos e os meios que se têm de fazer sua síntese. Foi por isso que dissemos, com Herder, que o homem éum sensonum comum. Nessa camada originária do sentir que recuperamos sob a condição de coincidir verdadeiramente com o ato de percepção e de abandonar a atitude crítica, vivo a unidade do sujeito e a unidade intersensorial da coisa, eu não os penso como o farão a análise reflexiva e a ciência. - Mas o que é o ligado sem a ligação, o que é este objeto que ainda não é objeto para alguém? A reflexão psicológica, que põe meu ato de percepção como um acontecimento de minha história, pode muito bem ser secundária. Mas a reflexão transcendental, que me mostra como o pensador intemporal do objeto, não introduz nele nada que ali já não esteja: ela se limita a formular aquilo que dá um sentido a "a mesa", "a cadeira", aquilo que faz estável a sua estrutura e torna possível minha experiência da objetividade. Enfim, o que é viver a unidade do objeto ou do sujeito, senão fazê-la? Mesmo se se supõe que ela aparece com o fenômeno de meu corpo, não é preciso que eu a pense nele para encontrá-la ali, e que eu faça a síntese desse fenômeno para ter sua experiência?

- Nós não procuramos extrair o para si do em si, não retornamos a uma forma qualquer de empirismo, e o corpo ao qual confiamos a síntese do mundo percebido não é um puro dado, uma coisa passivamente acolhida. Mas para nós a síntese perceptiva é uma síntese temporal; a subjetividade, no plano da percepção, não é senão a temporalidade, e é isso que nos permite preservar no sujeito da percepção a sua opacidade e sua historicidade. Abro os olhos à minha mesa, minha consciência é abarrotada de cores e de reflexos confusos, ela mal se distingue daquilo que se oferece a ela, através de seu corpo ela se espalha no espetáculo que ainda não é espetáculo de nada. Repentinamente, fixo a mesa que ainda não está ali, olho à distância quando ainda não há profundidade, meu corpo centra-se em um objeto ainda virtual e dispõe suas superfícies sensíveis de maneira a torná-lo atual. Posso remeter assim ao seu lugar no mundo o algo que me atingia porque posso, afastando-me no futuro, remeter ao passado imediato a primeira investida do mundo em meus sentidos, e orientar- me em direção ao objeto determinado assim como em direção a um futuro próximo. O ato do olhar é indivisivelmente prospectivo, já que o objeto está no termo de meu movimento de fixação, e retrospectivo, já que ele vai apresentar-se como anterior à sua aparição, como o "estímulo", o motivo ou o primeiro motor de todo o processo desde o seu início. A síntese espacial e a síntese do objeto estão fundadas neste desdobramento do tempo. Em cada movimento de fixação, meu corpo ata em conjunto um presente, um passado e um futuro, ele secreta tempo, ou antes torna-se este lugar da natureza em que, pela primeira vez, os acontecimentos, em lugar de impelirem-se uns aos outros no ser, projetam em torno do presente um duplo horizonte de passado e de futuro e recebem uma orientação histórica. Aqui existe a invocação, mas não a experiência de um naturante eterno. Meu corpo toma posse do tempo, ele faz um passado e um futuro existirem para um presente, ele não é uma coisa, ele faz o tempo em lugar de padecê-lo. Mas todo ato de fixação deve ser renovado, sob pena de cair na inconsciência, O objeto só fica nítido diante de meus olhos se eu o percorro com os olhos, a volubilidade é uma propriedade essencial do olhar. O acesso que ele nos dá a um segmento de tempo, a síntese que ele efetua são eles mesmos fenômenos temporais, escoam-se e só podem subsistir retomados em um novo ato, ele mesmo temporal. A pretensão à objetividade de cada ato perceptivo é retomada pelo seguinte, outra vez frustrada e novamente retomada. Este malogro perpétuo da consciência perceptiva era previsível desde o seu começo. Se só posso ver o objeto distanciando-o no passado é porque, assim como a primeira investida do objeto nos meus sentidos, a percepção que a sucede ocupa e também oblitera minha consciência, é então porque por sua vez ela vai passar, porque o sujeito da percepção nunca é uma subjetividade absoluta, porque ele está destinado a tornar-se objeto para um Eu ulterior. A percepção existe sempre no modo do "Se". Ela não é um ato pessoal pelo qual eu mesmo daria um sentido novo à minha vida. Aquele que, na exploração sensorial, atribui um passado ao presente e o orienta para um futuro não sou eu enquanto sujeito autônomo, sou eu enquanto tenho um corpo e enquanto sei "olhar". Antes de não ser uma história verdadeira, a percepção atesta e renova em nós uma "pré-história". E ainda isso é essencial ao tempo; não haveria o presente, quer dizer, o sensível com sua espessura e sua riqueza inesgotável, se a percepção, para falar como Hegel, não conservasse um passado em sua profundidade presente, e não o contraísse em si. Ela não faz atualmente a síntese de seu objeto, não que ela o receba passivamente, à maneira empirista, mas porque a unidade do objeto aparece pelo tempo, e porque o tempo escapa a si na medida em que ele se retoma. Graças ao tempo, tenho um encaixe e uma retomada das experiências anteriores nas experiências ulteriores, mas em parte alguma uma posse absoluta de mim por mim, já que o vazio do futuro se preenche sempre com um novo presente. Não existe objeto ligado sem ligação e sem sujeito, nenhuma unidade sem unificação, mas toda síntese é simultaneamente distendida e refeita pelo tempo que, em um único movimento, a põe em questão e a confirma porque ele produz um novo presente que retém o passado. A alternativa entre o naturado e o naturante transforma-se então em uma dialética do tempo constituído e do tempo constituinte. Se devemos resolver o problema que nos colocamos - o da sensorialidade, quer dizer, da subjetividade finita -, será refletindo no tempo e mostrando como ele só é para uma subjetividade, já que sem ela, o passado em si não sendo mais e o futuro em si não sendo ainda, não haveria tempo - e como todavia essa subjetividade é o próprio tempo, como podemos dizer, com Hegel, que o tempo é a existência do espírito ou falar, com Husserl, de uma autoconstituição do tempo.

Por ora, as descrições precedentes e as que vão seguir-se nos familiarizam com um novo gênero de reflexão, do qual esperamos a solução de nossos problemas. Para o intelectualismo, refletir é afastar ou objetivar a sensação e fazer aparecer, diante dela, um sujeito vazio que possa percorrer este diverso e para quem ele possa existir. Na medida mesma em que o intelectualismo purifica a consciência esvaziando-a de toda opacidade, ele faz dela uma verdadeira coisa, e a apreensão dos conteúdos concretos, o encontro entre essa coisa e o espírito, torna-se impensável.

Se se responde que a matéria do conhecimento é um resultado da análise e não deve ser tratada como um elemento real, é preciso admitir, correlativamente, que a unidade sintética da apercepção é, ela também, uma formulação nocional da experiência, que não devemos atribuir a ela valor originário e, em suma, que a teoria do conhecimento deve ser recomeçada.

Convimos, por nosso lado, que a matéria e a forma do conhecimento são resultados da análise. Ponho uma matéria do conhecimento quando, rompendo com a fé originária da percepção, adoto em relação a ela uma atitude crítica e me pergunto "o que verdadeiramente vejo". A tarefa de uma reflexão radical, quer dizer, daquela que quer compreender-se a si mesma, consiste, de uma maneira paradoxal, em reencontrar a experiência irrefletida do mundo, para recolocar nela a atitude de verificação e as operações reflexivas, e para fazer a reflexão aparecer como uma das possibilidades de meu ser. O que temos então no começo? Não um múltiplo dado com uma apercepção sintética que o percorre de um lado a outro, mas um certo campo perceptivo sobre fundo de mundo. Aqui nada é tematizado. Nem o objeto nem o sujeito são postos. No campo originário, não se tem um mosaico de qualidades, mas uma configuração total que distribui os valores funcionais segundo a exigência do conjunto, e por exemplo, como vimos, um papel "branco" na penumbra não é branco no sentido de uma qualidade objetiva, mas vale como branco. Aquilo que chamamos de sensação é apenas a mais simples das percepções e, enquanto modalidade da existência, ela não pode, assim como nenhuma percepção, separar-se de um fundo que, enfim, é o mundo. Correlativamente, cada ato perceptivo manifesta-se como antecipado em uma adesão global ao mundo. No centro desse sistema, um poder de suspender a comunicação vital ou, pelo menos, de restringi-la, apoiando nosso olhar em uma parte do espetáculo e consagrando-lhe todo o campo perceptivo. Não é preciso, vimos, realizar na experiência primordial as determinações que serão obtidas na atitude crítica, nem por conseguinte falar de uma síntese atual quando o múltiplo ainda não está dissociado.

Seria preciso então rejeitar a idéia de síntese e a idéia de uma matéria do conhecimento?

Diríamos que a percepção revela os objetos assim como uma luz os ilumina na noite, seria preciso retomar por nossa conta este realismo que, dizia Malebranche, imagina a alma saindo pelos olhos e visitando os objetos no mundo? Isso não nos livraria da idéia de síntese, já que para perceber uma superfície, por exemplo, não basta visitá-la, é preciso reter os momentos do percurso e ligar um ao outro os pontos da superfície. Mas vimos que a percepção originária é uma experiência não-tética, pré-objetiva e pré-consciente.

Digamos então provisoriamente que existe somente uma matéria de conhecimento possível. De cada ponto do campo primordial partem intenções, vazias e determinadas; efetuando essas intenções, a análise chegará ao objeto de ciência, à sensação enquanto fenômeno privado, e ao sujeito puro que põe um e outro. Esses três termos só estão no horizonte da experiência primordial. E na experiência da coisa que se fundará o ideal reflexivo do pensamento tético. Portanto, a própria reflexão só apreende seu sentido pleno se menciona o fundo irrefletido que ela pressupõe, do qual tira proveito, e que constitui para ela como que um passado original, um passado que nunca foi presente.




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FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO
(excerto: parte II, cap. I)
Maurice Merleau-Ponty
[1908-1961]
Título original: PHÉNOMÉNOLOGIE DE LA PERCEPTION.
Éditions Gallimard, 1945.
tradução: Carlos Alberto Ribeiro de Moura
Livraria Martins Fontes, São Paulo, 1994

Queira o bem, plante o bem e o resto vem...
 

 



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