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Autor Tópico: Cegos no paraíso  (Lida 492 vezes)

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Cegos no paraíso
« em: 31/10/2014, 10:42 »
 
Cegos no paraíso

Diogo Vaz Pinto


 

Em São Tomé e Príncipe não há oftalmologistas. Equipa portuguesa faz 6 mil quilómetros quatro vezes por ano para recuperar a visão de "muitas pessoas desnecessariamente cegas"

Segunda de manhã, oito quando a equipa deixa o hotel. Num tirinho põe-se no hospital. É difícil engarrafar a marginal, e as distâncias na capital dificilmente aborrecem. Está bom tempo e por estes dias se chove é só para o sol receber aplausos ao entrar e sair de cena. O protagonista é sempre ele. Chegamos ao recinto numa carrinha identificada com a Cooperação Portuguesa, Projecto Saúde para Todos: Especialidades. Velhos pavilhões com uma boa folga entre eles. Dividem-se assim as diferentes especialidades do único hospital da ilha.

A equipa separa-se. Dois médicos ficam com as consultas, os restantes seguem para o bloco operatório. É a típica sala de exames aos olhos. Um quadro para as letras em diferentes escalas a um canto com uma cadeira a enfrentá-lo no lado oposto, depois há mais cadeiras e os comuns aparelhos de optometria. Num entra e sai constante, em pouco mais de uma hora os dois médicos, assistidos por um funcionário hospitalar, atendem sete ou oito pacientes. Têm uma pilha com as fichas e vão chamando os nomes.

Estavam com o senhor Cader Viana, de 80 anos, quando entrámos, depois atenderam miúdos entre os cinco e os doze anos, outro homem de 69, uma mulher de 30, e isto duas, às vezes três consultas em simultâneo. Alguns recém-operados, a cicatrizar, numa recuperação à base de pomadas, gotas. Nos mais velhos o problema é o glaucoma, depois há as cataratas, com muitas crianças com deficiências congénitas. Há um caso que incomoda o Dr. António Melo. Uma jovem traz o filho de 12 anos com estrabismo congénito: não vê muito do direito e já não vê nada do esquerdo. Diz ela que o pai disse que o problema apareceu há uns anos mas depois desapareceu. O médico não lhe dá hipótese; que as coisas não se passam assim, e o pior, se consultado mais cedo, antes dos 10, ainda se podia fazer alguma coisa. Agora está condenado a viver com uma cegueira que progredirá até a luz não ter mais formas.

Olhar é dos poucos luxos de que os são--tomenses vão gozando diariamente. Abrem os olhos e são tranquilamente inundados por uma visão encantadora, um ponto de vista reservado àquela "suave, doce, lânguida ilha/aberta como flor na distância do mar". Assim o poeta Ruy Cinatti começou as suas "Lembranças para S. Tomé e Príncipe", de 1972.

Volvidos mais de 40 anos, o arquipélago mantém a graça que "prolonga um pouco a virginal beleza", atrás das arruinadas marcas do colonialismo que nunca foi suplantado por uma nova dinâmica económica e empresarial.

Porque "todas as pessoas têm o direito a ver", num dos países mais pobres do mundo há apenas um médico para cada 2 mil habitantes, nenhum oftalmologista, e é um projecto português que vem há cinco anos tentando cobrir esta lacuna e retirar do escuro as "muitas pessoas desnecessariamente cegas".

Luís Dias Pereira, capitão da equipa de oftalmologia que, quatro vezes por ano, sai de Portugal com destino à ex-colónia e retoma, durante 15 dias, a missão de aligeirar as dificuldades de uma população que não tem nos dois hospitais do arquipélago - este e um outro no Príncipe - um único doutor que lhes trate os problemas dos olhos.

Em entrevista na noite de sábado, o médico contava como nas consultas desse mesmo dia tinha atendido um homem com graves limitações de mobilidade. Um indivíduo pesado e grande, que teve de ser carregado por outros três, não havendo uma cadeira de rodas para o trazer. Não se trata, esclarece, de alguém que se tornou obeso por embarcar em excessos alimentares, antes alguém que sofre de um problema de saúde que não chegou a ser descortinado - "talvez um problema neuromuscular". Certo é que o homem já não mexia as pernas. "Além disso, que já por si é limitativo, e de que maneira, está praticamente cego: não conta os dedos a 20 centímetros da cara." Uma cegueira que provavelmente é reversível, adianta o especialista. Infelizmente, explica, nesta missão já não será possível dar-lhe uma resposta porque o número de doentes listados preencheu já as vagas operatórias - havendo lugar a cerca de 100 intervenções em cada visita ao país. Fica agendado para a próxima. Terá de esperar quatro meses.

Dias Pereira diz que a frieza e a distância que lhe permitem fazer melhor o seu trabalho levam a que esqueça muitos dos casos que seguiu ao longo dos anos. Apesar da dificuldade ou da resistência a destacar esta ou aquela excepção que lhe tenham ficado na memória, refere uma criança de cinco anos que tratou em S. Tomé com um problema de cataratas e que tinha ainda uma "síndrome complicada, um défice intelectual, de desenvolvimento". Lembra que "havia uma tensão muito grande entre a menina e a mãe, que, apesar de mãe, muitas vezes perdia a paciência com a filha". A menina "não via, gritava, agitava-se, não era que tentasse agredir mas havia toda uma dificuldade de relacionamento muito séria. Tinha cataratas, e de facto pudemos operá-la. Mas após a operação, e mesmo nestas idades", explica, "readquirir a visão às vezes não se consegue totalmente, e sobretudo não é um processo imediato". Contudo, "só de operarmos as cataratas, o comportamento da miúda e da própria mãe modificou-se: a miúda passou a ser muita mais calma e a mãe deixou de ser rude ao tentar controlar aquela agitação da filha". O médico admite que este foi o caso no qual a distância profissional teve mais dificuldade em impor-se.

O i acompanhou os quatro médicos e duas enfermeiras numa das manhãs já no fim da última destas missões, a 15.a desde que o programa passou a abranger a área de oftalmologia, em 2010. De acordo com um relatório sobre as primeiras 13 missões, durante as mesmas foram realizadas "cerca de 7 mil consultas e 955 cirurgias", sendo as principais patologias abordadas a catarata, o glaucoma ("tanto a catarata como o glaucoma surgem-nos em fases muito avançadas"), a cegueira infantil, a prevenção de trauma e a retinopatia diabética.

A missão tem também um papel importante na formação e na capacitação dos serviços, e Dias Pereira adianta que as pessoas com que têm contactado se mostram "motivadas, com grande vontade de aprender. Embora não autonomamente, já conseguem dar alguns dos passos na actividade do bloco operatório ou das consultas sozinhas". Assim, não havendo oftalmologistas, "há outros técnicos que têm permitido uma curva de aprendizagem relevante". O médico acrescenta que "noutras especialidades, particularmente na pediatria, tem havido uma melhoria substancial no tratamento e acompanhamento dos doentes".

No consultório, o corrupio não abrandou. A uns 500 metros dali entrávamos no bloco operatório. Uma criança de seis meses de barriga para cima na mesa, já anestesiada. Um problema de cataratas congénita bilateral. Dias Pereira ainda nos conduz antes de vestir uma segunda farda e começar a operação. Explicava que é uma intervenção que vai ser feita nas mesmas condições em que seria realizada em Portugal, com os mesmos meios e cuidados. Somos dez na sala, um tanto atravancada pelo material. O equipamento vem de Portugal e, enquanto a equipa está fora, fica trancado num escritório do Instituto Marquês de Valle Flôr - parceiro do projecto.

A luz do Sol entra por um dos lados e é franqueada pelo vidro fosco, acalma, e então abre aquele espaço em tonalidades suaves de azul até aos joelhos, combinada com a pedra de mármore daí para baixo. Pereira Dias dirige apoiado por Cláudia Calhau, com a enfermeira Anabela Raposo - que coordena a missão com Dias Pereira - a cobrir todas as bases para que nada falhe. Além dos portugueses há um auxiliar médico cubano (no hospital ao abrigo de um protocolo entre os dois países) e três médicos são-tomenses a seguir a intervenção, mais um assistente hospitalar, também são-tomense, que leva e traz o que é preciso. Tudo na perfeição. Uma hora passa e chega o momento de tranquilizar a mãe.

Saizete Cruz tem 31 anos e mais quatro filhos. Dilan foi o primeiro a precisar de cuidados sérios. Dois meses depois de o ter dado à luz percebeu que os gestos que lhe faziam não tinham resposta. Na consulta a doutora explicou que havia um véu a impedi-lo de distinguir as formas. Depois restou esperar o regresso à ilha dos especialistas.

Operado a um glaucoma, no fim da consulta, o senhor Viana insistia com os médicos numa recompensa. Queria oferecer--lhes bananas que é tudo o que tem. Que não se preocupasse, dizia-lhe António Melo. E ele encolhendo os ombros sem perder o sorriso. Já pouco via antes da operação, agora tem uns comprimidos para tomar e a recomendação de comer as suas bananas maduras.

Nunca antes fora operado. Diz que está "muito feliz, muito agradecido". Pereira Dias admite que para o paciente é um "impacto grande: em 30 minutos resolvemos o problema. Depois, mais duas ou três semanas e a pessoa readquire uma visão ao nível da que tinha há dez anos". Mas na hora de falar dos sucessos do programa o médico não se congratula, apenas confessa o contentamento por fazer parte de algo que mostra que "não somos só futebol", acrescentando que é bom ver o empenhamento do Estado português no apoio à população dos antigos territórios ultramarinos.
 
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