Professores de Educação Especial: “Estamos a fazer um acompanhamento de armazém”
Foi uma luta de quatro anos. Tantos quantos os que Diana esteve à espera de vaga numa escola que acolhesse os seus dois fi lhos gémeos, diagnosticados com autismo, hiperactividadee outras comorbilidades. Não falam, mas comunicam de outras formas. "Se querem alguma coisa empurram-me para o sítio ou levam a minha mão. Às vezes dizem alguma coisa com intenção, outras vezes dizem por dizer. Outra questão é que são fugitivos. Não têm noção do perigo."
Durante esses quatro anos, a família virou-se para dentro e a casa transformou-se numa espécie de creche improvisada. "Não conheciam muitas mais pessoas, não lidavam com mais crianças, o que não era benéfico para desenvolverem as suas competências sociais." Até que as vagas apareceram, mas o ensino inclusivo que esperava para os seus fi lhos não. "No primeiro ano de pré-escolar, ou seja, no ano passado, a primeira reunião que tivemos para fazer o RTP [o relatório técnico-pedagógico, que fundamenta a necessidade de medidas de suporte à aprendizagem e à inclusão] foi em Fevereiro, quase seis meses depois de a escola já ter começado", diz esta mãe.
Este ano, quase no final de Outubro, ainda não têm professora de Educação Especial. Frequentam uma escola pública no distrito de Setúbal, mas as dificuldades em conseguir um lugar foram iguais mesmo no privado. Essa demora na integração numa escola teve consequências no desenvolvimento destas crianças, que têm hoje cinco anos. "Até no parque a brincar com outros meninos estavam muito no mundo deles, o que acabou por melhorar muito depois de terem entrado na escola", diz Diana, que tem mais duas fi lhas, com 14 e 11anos, e enfrentava tudo isto num contexto de violência doméstica.
Não é um relato isolado de como a educação inclusiva não está a chegar a todos os alunos que dela necessitam. "Estamos quase no final de Outubro e muitas crianças ainda estão sem apoio. Às vezes os professores que estão a dar apoio no início do ano ficam com uma turma porque há falta de professores e deixam depois de dar esse apoio. Algum dia isto vai ter de acabar e o Estado vai ter de assumir que é sua obrigação garantir uma educação equitativa", nota Lourenço Santos, membro do Movimento por uma Inclusão Efectiva, que tem posto este tema na agenda. (...)
Em 2023/24, eram 93.696 os alunos a quem tinham sido mobilizadas medidas selectivas ou adicionais — por comparação, em 2020/21, eram 78.268 os estudantes sinalizados. A taxa de incidência global ronda os 8%, mas no 2.º e no 3.º ciclo é superior aos 10%. Tem havido um aumento do número de alunos sinalizados, que acabam por ser referenciados cada vez mais cedo, enquadra Ana Simões, coordenadora do departamento de Educação Especial e educação inclusiva da Federação Nacional dos Professores (Fenprof).
"Os levantamentos que temos feito anualmente mostram cada vez mais falta de recursos para responder às necessidades de cada aluno, sejam mais docentes de Educação Especial, psicólogos, terapeutas ou assistentes operacionais. Sem estes recursos, a educação inclusiva torna-se um bocado fantasia", observa. (...)
"Os alunos estão na escola. É onde devem estar, ao pé dos seus colegas, mas depois falta a resposta adequada para cada uma das características, coisas tão simples como ter um assistente operacional com um aluno o dia todo. É por isso que há muita contestação, quer dos pais destes alunos, que exigem e bem que o direito à educação seja cumprido, quer dos docentes porque não conseguem dar a resposta a estes alunos nem aos outros porque estão sozinhos nas salas. Raras são as turmas que têm apenas um aluno com necessidades específicas e a diferenciação pedagógica com turmas de 25, 28, 30 alunos é impossível", nota. (...)
Rui Foles traça o mesmo cenário: "Nós, professores de Educação Especial, sentimo-nos a enganar os encarregados de educação. Apesar de alertarmos, não estamos a prestar o serviço que deveríamos prestar aos alunos. Estamos a fazer um acompanhamento de armazém em que recebemos os alunos e estamos a acompanhá-los só para chegarem ao fi m do dia sem problemas."
Falta, como diz, "uma ligação professores - médicos - família". Uma das sugestões que faz é que a lei de educação inclusiva seja revista. "Temos uma manta de retalhos em que temos de chegar aos que têm uma dificuldade cognitiva ligeira e aos que são autistas não verbais , por exemplo. E temos de andar aqui a fugir de um lado para o outro e tentar socorrer todas as pontas, cheios de burocracia, sem terapias", diz o professor. Além disso, insiste que o rácio de alunos por professor e auxiliares tem de ser cumprido e que os professores que trabalham nas unidades de ensino estruturado deveriam ter uma majoração no vencimento ou no tempo de serviço. (...)
Até lá, "as crianças continuam a ver o futuro comprometido com estes atrasos ano após ano", lamenta Lourenço Santos. "Se o Estado não quer investir na educação acabará, mais à frente, a subsidiar estas crianças porque não tiveram o apoio que seria suposto e vão ser jovens adultos muito menos autónomos e muito menos independentes do que aquilo que poderiam ser."
Fonte: Excertos da notícia do Público