Em dois anos (2019 e 2020), foram emitidos 103.592 atestados de incapacidade. Em 2019, sabe-se que dos 93.847 pedidos de junta médica, realizaram-se 81.535, e desse número foi atribuída incapacidade a 93% dos requerentes.
Não se sabe, no entanto, que valores de incapacidade foram atribuídos a estas pessoas. O Estado limita-se a revelar números (quase sempre incompletos), mas, sem explicar porquê, não dá conta das percentagens de incapacidade atribuídas. Reconhece, para além deste facto, uma outra realidade perturbadora, cuja dimensão certa se desconhece: há um sem número de pessoas que aguarda a realização de juntas médicas para verificação de incapacidade. Poderão ser centenas, milhares, dezenas de milhares… não sabemos.
Acresce a isto um dado curioso: para todos os efeitos, perante a lei, qualquer pessoa que obtenha um atestado de incapacidade é deficiente, independentemente do grau de incapacidade que lhe for atribuído. É certo que para a obtenção de alguns apoios sociais e de certos benefícios fiscais, é, na maior parte das vezes, elegível quem tem 60% ou mais de incapacidade. No entanto, tecnicamente, tanto é “pessoa com deficiência” quem tem 10% de incapacidade como quem tem 59, 60, 80 ou 97.
Há uns dias, às três pancadas embandeiradas em arquinho e balão, de uma forma que só nos envergonha, o Parlamento aprovou uma proposta de lei que define que apenas e só as pessoas com 80% ou mais de incapacidade podem ter acesso à reforma antecipada sem penalizações. Para além de ter criado (não inocentemente) uma profunda divisão entre as próprias pessoas com deficiência, criou um monstro: daqui a uns meses, pouco mais aliviados que possamos estar das costas largas da pandemia, iremos ouvir falar da abertura de uma verdadeira caixa de Pandora, que se consubstanciará numa espécie de corrida louca às juntas médicas – não só por quem aguarda ser chamado mas também por quem, já lhe tendo sido atribuída incapacidade, se verá no direito de pedir uma reavaliação do seu estado. No fundo, por outras palavras, tentar a sua sorte.
É certo que se a lei fosse aprovada como deveria ser, contando com o grau normalmente tido como “inicial” – os 60% -, as pessoas com 59% ou menos também o poderiam fazer. No entanto, é fácil perceber que, para quem já tem uma incapacidade igual ou superior a 60%, é incomparavelmente mais tentador “dar o salto” para os 80, que, para quem tem 30 ou 40, ousar subir para o patamar dos benefícios fiscais (por razões óbvias, não necessariamente exclusivamente técnicas e que todos nós saberemos ler nas entrelinhas…).
O Estado tem feito o pino para esconder os números (com toda a certeza, assombrosos) das pessoas que esperam por juntas médicas. À situação de muitas outras, já com incapacidade atribuída, tem optado por empurrar com a barriga, dispensando-as da apresentação de documentação com rigor temporal, com prejuízos incalculáveis para as pessoas e para o país e claro benefício para aqueles e aquelas que tentarão a fraude, muito mais facilitada por essa dispensa à conta da pandemia. Também aqui, a questão não se trata de deixar alguém para trás – trata-se de querer pouco, sem fundamento, sem lógica e estratégia adjacentes, deixando não apenas a maioria mas todos para trás. Trata-se, repetindo o passado, de ser poucochinho.
Por isso, não me espantaria nada que, daqui a uns tempos, em vez dos telejornais abrirem com as filas para a “casa aberta”, o assunto seja outro, muito mais grave, e que – situação evitável mas, nesta altura do campeonato, já necessária - rolem cabeças.
Texto de João Coelho Facebook