Recuperados da Covid-19: Histórias de quem foi ao inferno e voltouUnidos na doença Apesar de o casal ter estado infetado ao mesmo tempo, Miguel Fernandes passou pelos cuidados intensivos, enquanto Margarida do Carmo recuperou em casa
FOTO: Lucília Monteiro
Há quem tenha ficado com receio de abraçar os filhos, quem se proteja a todo o custo de uma reinfeção ou quem tema as sequelas da Covid-19 – já se sabe que o impacto do vírus vai muito além dos pulmões. Histórias de quem venceu a doença
Oatordoamento era tal, ao fim de 12 dias de internamento por causa da Covid-19, que Isabel Fraga, 69 anos, quase não dava conta dos aplausos de boas-vindas dos vizinhos, aquando do seu regresso a casa. Olhou em volta, naquele dia 2 de abril, e viu muita gente às janelas dos edifícios de 12 andares da rua onde vive, na Portela, em Loures. Sim, as palmas eram mesmo uma celebração da sua chegada. É esta a história que prefere recordar, mas a verdade é que outros vizinhos não foram tão calorosos.
“Houve reações estranhas… Alguns entraram em pânico quando souberam que uma pessoa do prédio estava contagiada. Soube, até, que pediram à Junta de Freguesia para vir desinfetar a rua”, revela, confortavelmente instalada no sofá da sua sala de estar. “Quando vou às compras, se me cruzar com vizinhos na entrada, sinto que se afastam. A mim, não me incomoda, mas sei que poderia ser motivo de desconforto para outras pessoas”, desvaloriza, antes de acrescentar: “Esse tipo de atitudes pode ser muito cruel.”
A estigmatização pode ser potencialmente mais perigosa e devastadora do que a própria doença”
TIAGO PEREIRA, COORDENADOR DO GABINETE DE CRISE COVID-19 DA ORDEM DOS PSICÓLOGOS PORTUGUESES
A discriminação das pessoas que estiveram infetadas está longe de ser inofensiva. “A estigmatização pode ser potencialmente mais perigosa e devastadora do que a própria doença”, defende o coordenador do Gabinete de Crise Covid-19 da Ordem dos Psicólogos Portugueses, Tiago Pereira, 36 anos.
“As potenciais vítimas desse comportamento podem esconder os sintomas, a própria doença ou os contactos que tiveram durante o período de incubação, arriscando colocar mais pessoas em risco, para evitarem ser alvo de discriminação”, exemplifica o psicólogo, antes de rematar: “O estigma é prejudicial para todos, incluindo para quem estigmatiza.”
Isabel Fraga não duvida de que muita gente poderá esconder que teve a doença “por ter medo do medo dos outros”. Mas não é esse o seu caso: “Até nas redes sociais já falei sobre isto. Não tenho problemas nenhuns com este assunto.”
As suas inquietações são outras. “Quando estava internada, tomava muitos medicamentos por dia, nem sei o que tomei, e temo os efeitos secundários. Também não faço ideia até que ponto os meus pulmões poderão ter ficado fragilizados”, lamenta, antes de desviar o pensamento: “Sei que a doença deve deixar sequelas, mas não quero pensar nisso.”
Estigma Alguns vizinhos de Isabel Fraga pediram à junta para desinfetar a rua, depois de saberem que ela tinha sido contagiada.
FOTO: Diana Tinoco
Desde os 10 anos que Isabel Fraga não era admitida numa enfermaria. O seu sintoma mais prolongado foi um cansaço extremo – “Parecia que me estavam a levar para o outro lado…” –, mas assegura que não teve medo nenhum ao longo do internamento no Hospital Curry Cabral, em Lisboa. “Pensei vagamente que poderia não regressar a casa, cheguei a dar algumas indicações às minhas filhas, mas não estava muito convicta disso”, admite. Além da idade, não tinha qualquer outro fator de risco.
Aos poucos, o cansaço foi desaparecendo. Hoje, sente-se “perfeitamente recuperada”, apesar de continuar a ter algumas dificuldades de concentração. “Sinto-me tão bem que me é difícil o confinamento porque tenho vontade de sair”, admite a tradutora aposentada. Filha dos escritores Urbano Tavares Rodrigues e Maria Judite de Carvalho, Isabel Fraga estava a habituada a frequentar um clube de leitura, a dinamizar encontros de poesia em sua casa, além de dar aulas na Universidade Sénior. Ao mesmo tempo, praticava meditação em grupo e agendava encontros regulares com os amigos. Por enquanto, continua a evitar o contacto com outras pessoas, incluindo as duas filhas, os genros e os quatro netos.
Desde que regressou a casa, mantém o caderninho que lhe serve de diário atualizado – um hábito de há décadas. Também lá terá escrito algumas reflexões sobre a doença. “Aprendi que sou mais resiliente do que imaginava. Não ter tido medo fortaleceu-me”, diz. “Não acredito muito no ser humano, mas esta experiência trouxe-me mais confiança na bondade dos outros.”
FOTO: Marcos Borga
Culpa e vergonha
Aos 44 anos, Paulo Miguel da Cunha nunca pensou que fosse viver a experiência de estar internado numa unidade de cuidados intensivos. Testou positivo a 22 de março e, quatro dias depois, quando já lhe custava terminar as frases, foi internado no Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa. Não tinha quaisquer outras doenças associadas, além da Covid-19.
“Foi um choque”, confessa, vestido com um equipamento de desporto – uma das suas paixões – num jardim próximo de sua casa, em Oeiras. “Quando cheguei à unidade, confrontei-me com pessoas sedadas e entubadas, e o meu estado de espírito foi-se muito abaixo. Em sete doentes, só dois estavam conscientes, um deles era eu. Isso mexeu muito comigo. Foi quando percebi a gravidade da situação”, relata o piloto de aviação comercial.
Passou oito dias nos intensivos, mas as primeiras 48 horas foram as mais complicadas. “Temi não voltar a ver a minha mulher e não estar cá para ver a minha filha crescer… Mas procurei afastar esses pensamentos e focar-me em recuperar”, diz. Deixou o hospital a 3 de abril e ainda cumpriu mais 14 dias de isolamento em casa, num quarto separado da companheira e da filha de 7 meses.
“Estou oficialmente curado há mais de um mês, mas mantenho um certo distanciamento dos outros. Só estive com a minha mãe à distância”, conta. Apesar de estar recuperado, o medo de contagiar os outros não desapareceu. “Se eu contaminasse alguém que não resistisse como eu, sentir-me-ia pessimamente”, reflete.
“Culpa” torna-se uma palavra inevitável. “A possibilidade de infetar outras pessoas, sobretudo se levar à perda da vida de alguém, aumenta o potencial de desenvolvimento de trauma”, alerta Tiago Pereira. O psicólogo sublinha que, quando algo assim acontece, é fundamental lembrar à pessoa que tomou as melhores decisões possíveis, de acordo com a informação disponível na altura.
Tiago Pereira alerta para o risco da autoestigmatização, ou seja, “a internalização de estereótipos associados a estar doente e contagioso”, que acarretam sentimentos de vergonha ou de culpa por estar infetado, por ter eventualmente contagiado alguém ou por sujeitar a família a ser alvo de discriminação.
Paulo Miguel da Cunha não tem conhecimento de ter contagiado alguém, mas não descarta a possibilidade de uma reinfeção. Por isso, mantém todos os cuidados para evitar entrar de novo em contacto com o vírus. “Enquanto não houver provas científicas, não vou na conversa de estar imunizado contra a doença. Prefiro jogar pelo seguro.”
Não tem convivido com praticamente ninguém, e está em layoff, mas acredita que haverá pessoas com receio de se aproximarem. “No entanto, se se confirmar a imunidade, eu tenho mais sorte do que os outros porque já não poderei ser reinfetado”, defende-se.
“O medo alimenta-se do medo”, sublinha Tiago Pereira. “Funciona numa lógica semelhante à dos vírus, propagando-se de uma pessoa para as outras.” Ao mesmo tempo que estimula comportamentos de proteção, como aderir voluntariamente ao confinamento, “por vezes também motiva atitudes discriminatórias irracionais”, alerta o psicólogo.
Apesar de se considerar recuperado, o piloto de aviação admite sentir algumas limitações respiratórias. “Já voltei a fazer surf e percebi que a minha capacidade pulmonar não tem nada a ver com antigamente. Os médicos ainda não sabem dizer-me se vai voltar ao que era ou não”, lamenta. Por sua livre iniciativa, decidiu agendar uma consulta de Pneumologia.
Sequelas que podem ficar
“Neste momento, sabemos muito pouco sobre as sequelas que podem decorrer da doença”, admite Fábio Cota-Medeiros, infeciologista no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. “Há consequências que podem advir do vírus em si, outras podem resultar da inflamação, e a passagem dos doentes graves pelos cuidados intensivos também pode deixar marcas”, enumera o cocoordenador da unidade onde estão internados doentes com Covid-19. Apesar da incerteza, “já é óbvio que há muita doença para lá dos pulmões”, afirma, perentório.
Do ponto de vista neurológico, Fábio Cota-Medeiros tem-se confrontado com alguns doentes com encefalopatia, que se traduz em desorientação e prostração, sem outro motivo aparente que não seja o SARS-CoV-2. Já a nível cardíaco, tem registado pericardites (inflamação do tecido que envolve o coração) e miocardites (inflamação do músculo cardíaco). “Há doentes muito jovens com estas manifestações, que só conseguimos atribuir ao vírus”, revela.
Raquel Martins passou 48 dias infetada com a Covid-19, isolada em sua casa. Tempo suficiente para os seus braços desaprenderem os afetos. “Faz-me muita confusão. Consigo abraçar as minhas filhas, mas há um medo que ficou, apesar de não ser fundamentado”, confidencia.
Preocupa-me que daqui a meses ou anos possa ser surpreendida por consequências até agora desconhecidas”
RAQUEL MARTINS, ENFERMEIRA JÁ RECUPERADA
A enfermeira de 33 anos livrou-se da doença a 30 de abril. Apesar do alívio por ter tido, finalmente, dois testes negativos, nem todas as preocupações se desvaneceram: “Assusta-me o futuro. Ainda não sabemos quais são os estragos causados pelo vírus. Preocupa-me que daqui a meses ou anos possa ser surpreendida por consequências até agora desconhecidas.”
Durante o período de 14 dias em que a sua carga viral era mais elevada, isolou-se na cozinha, onde até dormia. Usava máscara quando cozinhava para o marido e para as duas filhas gémeas de 5 anos. “Era claustrofóbico estar confinada numa só divisão”, recorda. “Será que vou ver-me livre disto?”, chegou a questionar ao longo de mais de um mês de infeção.
“É diferente saber que se vai estar 30 dias em isolamento de não se fazer ideia de quanto tempo será”, nota Tiago Pereira. “Assim como não estar totalmente esclarecido o que significa ultrapassar a doença pode aumentar a ansiedade”, acrescenta o psicólogo.
Longa espera A enfermeira Raquel Martins só conseguiu ter dois testes negativos para a Covid-19 ao fim de 48 dias
FOTO: Lucilia Monteiro
“Nenhuma das pessoas com quem contactei foi contagiada, mas custa-me que o meu marido e as minhas filhas tenham passado por esta situação por minha culpa…”, lamenta Raquel Martins.
Já regressou ao trabalho num hospital privado do Porto, onde se terá contagiado, mas a enfermeira reconhece que ainda não está a cem por cento. “Os médicos não sabem dizer-me se a anosmia [perda de olfato] vai regredir na totalidade. Tudo isto é novo”, constata. Também ainda não recuperou a energia de antigamente. “Não consigo dizer se o cansaço resulta da doença ou de ter ficado 48 dias fechada em casa. Ainda é cedo para perceber.”
As sequelas mais previsíveis são as pulmonares. “Sabemos que o vírus causa pneumonia e, nos doentes que exigem ventilação, são esperadas consequências a médio e a longo prazo por causa disso”, explica Fábio Cota-Medeiros. Outro problema associado aos doentes sujeitos a ventilação invasiva é a insuficiência renal, devido à resposta inflamatória. “Neste caso, também pode ser o próprio vírus a atacar os rins”, avança o infeciologista. Estas situações são mais frequentes em pacientes acima dos 50 anos.
Mais recentemente começaram a ser descritos eventos cardíacos. “O coração também pode entrar num processo inflamatório, a miocardite, e ter um quadro semelhante a um enfarte, o que, obviamente, pode implicar consequências a longo prazo”, sintetiza Fábio Cota-Medeiros. Há ainda registo de arritmias cardíacas, o que exige especiais cuidados no momento de medicar os doentes para não agravar a situação.
Os quadros neurológicos associados à Covid-19 “estão muito pouco esclarecidos”. Porém surgem relatos semelhantes em diferentes partes do mundo. “Têm sido descritos vários casos de AVC em doentes com SARS-CoV-2, mas ainda não podemos dizer que é o vírus que os provoca”, afirma, cauteloso. A surpresa da classe médica é ainda maior porque estes episódios se têm verificado em doentes mais jovens, sem fatores de risco que apontassem eventos cardiovasculares.
O especialista faz questão de sublinhar que não é expectável que estes fenómenos neurológicos, renais ou cardiovasculares aconteçam depois de recuperar da infeção. Não é após a alta que se têm registado AVC ou outras complicações, mas durante o período infecioso. “Estas consequências manifestam-se na fase aguda da doença”, reforça. Por isso, quem já recuperou não deve viver assombrado por estes fantasmas.
Não são só os velhos…
Avassalador. É essa a palavra escolhida por Miguel Fernandes para descrever o que sentiu quando os médicos do Hospital de São João, no Porto, admitiram a possibilidade de o entubar devido às suas dificuldades respiratórias. “A ideia de telefonar à minha mulher e à minha filha para me despedir, antes de ser sedado, sem saber se voltava a casa, era muito angustiante”, recorda. “Pensei várias vezes na morte.”
Ao fim de três dias nos cuidados intensivos, começou a melhorar e a ventilação deixou de ser uma hipótese. Ao todo, passou 16 dias no hospital. A alta chegou a 19 de março, a tempo de celebrar o Dia do Pai junto da filha de 10 anos e da mulher, Margarida do Carmo, também ela a recuperar da Covid-19 em casa. O técnico de saúde mental e a bancária foram infetados por um amigo regressado de Itália.
“É importante que se perceba que a doença também afeta pessoas das faixas etárias mais jovens e sem fatores de risco. Eu tinha 49 anos e passei por uma situação moderada a grave. Vi pessoas mais novas do que eu entubadas nos intensivos”, alerta Miguel Fernandes, que celebrou 50 anos já depois do regresso a casa.
“A doença gera o sentimento de que há algo de mau em nós que pode passar para as outras pessoas. É difícil aplacar essa angústia por causa da incerteza acerca do vírus. Além disso, estarmos privados do contacto com os outros também aumenta a sensação de desamparo”, reflete Miguel Fernandes.
Durante o internamento, sempre que era necessário deslocar-se ao Serviço de Imagiologia para fazer exames, esperava-o o que passou a chamar de “caminhada para o purgatório”. “Ia equipado, com máscara, luvas e proteções nos pés, mas toda a gente fugia à minha passagem e as portas fechavam-se nos corredores. Foi uma imagem muito forte que me ficou”, descreve. “Mas no serviço onde estive internado nunca senti qualquer tipo de estigmatização. Todos foram muito humanos. Se passar por aqueles que cuidaram de mim na rua, não conseguirei reconhecê-los por causa do equipamento de proteção que utilizavam, mas as suas vozes ainda ressoam dentro de mim”, garante.
O futuro, esse, ainda implica muitas incógnitas. “A possibilidade de haver sequelas preocupa-me, mas não vivo angustiado com isso. Estou atento, sem andar à procura de sinais”, garante. “Como tive uma pneumonia grave, coloca-se a questão de não recuperar totalmente a capacidade pulmonar. Neste momento, a minha resistência está nos 80 por cento. Antes, fazia dez quilómetros numa hora. Agora, consigo correr oito”, ilustra.
Margarida do Carmo sente-se fisicamente recuperada, mas não psicologicamente. “Este medo coletivo continua a pairar. Só o tempo poderá dissipá-lo”, acredita. “Às vezes, tenho pensamentos negativos mas, no dia seguinte, já me sinto melhor”, conta. “Temos de nos permitir esses momentos de tristeza ou de angústia, sabendo que eles vão passar”, aconselha.
“Já estamos inscritos como dadores de plasma no Hospital de São João”, anuncia. Acredita-se que o plasma de doentes recuperados poderá acelerar o tratamento das pessoas infetadas. “Podermos ajudar alguém é maravilhoso. É uma forma de transformarmos um acontecimento traumático em algo positivo”, defende Miguel Fernandes. “Mas não sacralizo esta experiência, não digo ‘ainda bem que me aconteceu’.” O otimismo também tem os seus limites.