Covid-19: Discriminações raciais e de género no acesso global à vacina? Ativistas pedem à ONU que investigue11.11.2021 às 09h30Mariana Almeida NogueiraFonte imagem: SIA KAMBOU/AFP via Getty ImagesUm grupo de associações e especialistas em Saúde Pública acusa certos países ricos de violar a Lei internacional dos Direitos Humanos e a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e exige que as patentes sobre tratamentos, testes e vacinas contra a Covid-19 sejam levantadas
ma coligação internacional, composta por associações defensoras dos direitos humanos, especialistas em saúde pública e organizações da sociedade civil, decidiu tomar medidas legais contra os EUA, Reino Unido, Alemanha, Noruega e Suíça.
A Aliança Africana, o Centro para os Direitos Económicos e Sociais, o Centro de Estudos Legais e Sociais da Argentina, o Grupo dos Direitos das Minorias, a Oxfam International e a Treatment Action Campaign acusam tais países de violar a lei internacional dos Direitos Humanos ao não intervir no que tem sido aquilo que definem como “uma aplicação injusta e racialmente discriminatória da vacina contra a Covid-19 e de outras tecnologias de saúde usadas para tratar a doença”.
As nações em questão, por se recusarem a levantar as patentes em todas as tecnologias médicas relacionadas com a Covid-19, são acusadas de violar a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.
Esta convenção, ratificada por quase todos os países do mundo, exige que os países tomem medidas eficazes “para rever as políticas governamentais, nacionais e locais e para alterar, rescindir ou anular quaisquer leis ou regulamentos que tenham o efeito de criar ou perpetuar a discriminação racial onde quer que ela exista.”
Os mais afetados pela dificuldade em aceder a certas tecnologias e tratamentos mais caros são, já se sabe, os países em vias de desenvolvimento, sobretudo no Hemisfério Sul.
Taxas de mortalidade elevadas, percentagens irrisórias de população vacinada e uma grande dificuldade em rastrear a progressão da pandemia, por falta de acesso a testes e reagentes necessários à realização dos mesmos, são algumas das consequências apontadas no documento.
“Quando dizemos, por exemplo, que em África não há casos, porque a população é jovem e vive muito afastada, devíamos refletir sobre os casos que começaram a aparecer na África do Sul a partir do momento em que há dinheiro para testar”, comenta o especialista em Saúde Pública da Universidade Católica de Lisboa Henrique Lopes.
Num apelo dirigido ao Comité da Organização das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD), a coligação sublinha ainda que, mesmo perante as assimetrias existentes, EUA, Reino Unido, Alemanha, Noruega e Suíça recusaram o pedido da Índia e da África do Sul, feito em outubro de 2020 e renovado em maio de 2021, à Organização Mundial do Comércio, para o levantamento temporário das patentes das tecnologias de saúde relacionadas com a prevenção, gestão e tratamento da Covid-19.
Números que fazem pensarQuase dois anos após o início da pandemia, enquanto a maioria dos países do Hemisfério Norte começa, literalmente, a respirar melhor, a Sul do Equador o cenário é diferente. Basta olhar os números para sentir a necessidade de parar e pensar sobre o que se está a passar.
Tal como o Secretário Geral das Nações Unidas sublinhou em setembro, 73% das doses existentes de vacinas contra a Covid-19 foram administradas apenas em 10 países. Os países ricos administraram 61 vezes mais doses per capita do que os países mais pobres e entregaram apenas 14% das 1.8 mil milhões de doses prometidas aos países pobres.
Neste momento, apenas 5,8% dos africanos foram vacinados. E, enquanto os 10 países mais ricos do mundo acumularão 870 milhões de doses excedentes de vacinas até o final de 2021, os países do Hemisfério Sul deverão perder 2.3 biliões de dólares até 2025, caso não consigam vacinar 60% de população até meados de 2022.
“As assimetrias são absurdas. Onde há pessoas não há vacinas e onde há vacinas não há pessoas”, afirma Henrique Lopes, sublinhando que os países que estiveram dispostos a pagar acima do preço de mercado tiveram imediatamente acesso à vacinação. “Ao ponto de Israel ter deitado fora um milhão de vacinas”.
Henrique Lopes revela ainda que da primeira produção de 25 milhões de vacinas, só 29 foram destinadas aos países pobres. “Teria sido menos ostensivo dizer que não havia vacinas”.
"Da primeira produção de 25 milhões de vacinas, só 29 foram destinadas aos países pobres. Teria sido menos ostensivo dizer que não havia vacinas" henrique lopes – especialista em saúde pública
O mercado rege-se por leis ferozes e o alargamento da vacinação, nos países ricos, a mais faixas etárias, bem como a necessidade de uma terceira dose para os mais idosos, “veio colocar pressão nos processos de compra”, segundo o especialista.
Veja o mapa/grafico no link oficial da noticaMáquinas de produzir variantesAlém de exigir uma renúncia temporária às patentes sobre vacinas, testes e tratamentos para a Covid, o apelo dirigido ao Comité da ONU para a Eliminação da Discriminação Racial pede que seja transferida tecnologia e conhecimento das farmacêuticas relevantes para os muitos fabricantes em todo o mundo que estão à disposição para aumentar a produção dessas tecnologias médicas.
Mas o problema é mais profundo, como aponta Henrique Lopes. Não basta produzir mais, a distribuição tem de ser justa e, até agora, andou longe disso. “Quando a Índia estava em pleno caos de mortalidade, apesar de ser dos maiores produtores de vacinas do mundo, continuava a exportá-las para a Europa. Isto é pérfido”.
"Quando a Índia estava em pleno caos de mortalidade, apesar de ser dos maiores produtores de vacinas do mundo, continuava a exportá-las para a Europa. Isto é pérfido" henrique lopes – especialista em saúde pública
Há ainda um longo caminho a percorrer até podermos considerar que a pandemia está a ser combatida por igual. África tem sido, nas palavras de Henrique Lopes, “o depositário da nossa falta de vergonha”. Não só a falta de testes e vacinas, mas também os maus acessos a hospitais e postos médicos ou a falta de profissionais de saúde fazem do continente uma autêntica “fábrica de variantes”.
Para Tian Johnson, fundador da Aliança Africana e membro da People’s Vaccine Alliance, “ África ficará conhecida como o continente da Covid, não por causa da hesitação vacinal, mas por causa da desigualdade, ganância e inação das empresas farmacêuticas e líderes políticos do Norte”.
Henrique Lopes reforça que é precisamente do interesse mais básico dos países do Norte “que estas pessoas se vacinem, nem que seja numa perspetiva egoísta, mas para isso seria preciso resolver problemas tão a montante como a falta de cadeias de frio estáveis para transportar e armazenar as vacinas sem que elas se estraguem, por exemplo”.
Mas África não está sozinha. O Brasil, certas regiões do México, Índia, Bangladesh e todos os países ricos onde proliferam os movimentos negacionistas e a hesitação vacinal contribuem para um futuro incerto no desenrolar da pandemia.
Fonte: visao.sapo.pt Link:
https://visao.sapo.pt/atualidade/sociedade/2021-11-11-covid-19-discriminacoes-raciais-e-de-genero-no-acesso-global-a-vacina-ativistas-pedem-a-onu-que-investigue/